sábado, 12 de setembro de 2009

VALLA

por Raimundo Palhano

Soube por Célia Linhares que no dia 8 de setembro, no Rio de Janeiro onde morava, Victor Vincent Valla tomou o rumo das estrelas e partiu sem ter tido o tempo necessário para dizer adeus. Conheci-o em meados dos anos 1980, quando cursava o mestrado em história social da urbanização e industrialização na Universidade Federal Fluminense.

Foi frequentando suas aulas que encontrei inspiração para escrever a minha dissertação sobre a produção da coisa pública em São Luís, durante a fase da Primeira República. Tornou-se, assim, não só o meu orientador acadêmico, mas, sobretudo, um amigo, daqueles que se guarda no lado esquerdo do peito.

Ao longo de minha formação educacional e acadêmica tive algumas influências marcantes. Valla foi uma delas. Bem diferente de muitas outras. Era um intelectual profundamente original e engajado. Anticonvencional em tudo. Não era um exibicionista. Não fazia da cena didática um palco iluninado. Sua ênfase maior não era o corpo. Era a alma. Não a alma platônica, separada do corpo, mas a alma viva da inteleigência e da sensibilidade humana.

Pouquíssimas vezes vi-o fazendo citações de autores consagrados e demonstrações de erudição. Era um estimulador da busca da autoria, do pensamento próprio. Nunca se posicionava como acadêmico que sabe sobre todas as coisas. Apresentava-se como um curioso, um aprendente, um cérebro encantado com os materiais da vida cotidiana. Um apaixonado por tudo que implicasse em construção de conhecimentos, sobretudo que dissessem respeito às camadas populares.

Aprendi muitas coisas com ele. Primeiramente, a gostar e de tomar cafezinhos. Chegado ao Brasil nos anos 1960( embora tenha se naturalizado brasileiro, era californiano de nascimento ), dizia-me que aprendera aqui que a melhor forma de acabar uma discussão calorosa era convidar os contendores a uma xícara de café bem quente, fumegante. Depois do café era tiro certo: vinha o consenso, naturalmente. Outras que me ensinou: o encantamento com as questões da cidadania, o respeito quase sagrado à esfera pública e o papel decisivo da participação popular para a construção da democracia no Brasil.

Para demonstrar a relevância de todo esse complexo temático, Victor Valla ressignificava o conceito de verba pública, afirmando que a melhor maneira de se saber, em uma determinada comunidade, qual era o verdadeiro valor dado à cidadania, bastava verificar como o poder público gastava os recursos do tesouro. Se priorizava a reprodução da força de trabalho, ou se dava preferência à reprodução do capital. Daí a importância que tinha em suas análises o controle social sobre o orçamento e a verba pública, como maneira de assegurar mais investimentos em serviços públicos de consumo coletivo.

Dizia-me não entender porque nós usávamos a palavra “infelizmente” quando queríamos negar um pedido ou comunicar um fato desairoso. “O que é que tem a ver a felicidade com isso"?. Sem uma explicação plausível, permanecia quase sempre sob intensa inquietação "filosófica". Era portanto um perguntador desconcertante, bem mais do que um respondente, apesar de ter sido uma fina estampa, tranquila e acolhedora.

Suas perguntas, aparentemente óbvias, sobre o dia a dia de toda hora deixavam em mim uma sensação de que boa parte do que fazíamos rotineiramente, o fazíamos sem compreender bem do que se tratava. Ficava sempre claro que por mais evidente que fosse o significado de muitos conceitos, infinitas perguntas ainda poderiam ser feitas e infinitas respostas poderiam ser dadas.

Valla era pós-doutor em História Social pela University of California, doutor e mestre pela Universidade de São Paulo-USP e graduado, em 1959, em educação pela Saint Edwards University dos Estados Unidos. Ocupava o cargo de Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense e Pesquisador Titular da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz. Suas linhas de pesquisa eram majoritariamente o cotidiano escolar e dos movimentos populares e educação, saúde e cidadania.

Produziu muita coisa boa que será descoberta e valorizada ainda por muito tempo nesse nosso país que vai aos poucos de instituindo como nação e civilização madura. Seu legado interessa muito mais aos que estão do lado do povo brasileiro do que aos que se vinculam aos interesses das elites. Por isso o seu nome não circulava muito nos saraus literários e muito menos nos salões de festa da sociedade hierarquizada.

Os primeiros trabalhos que produziu foram sobre a presença dos Estados Unidos no Brasil, com destaque à parte referente à economia, refletindo assim o interesse primário em conhecer mais a fundo o país que escolhera como segunda pátria. Daí foi um passo para que fizesse as escolhas que iriam marcar a sua trajetória profissional como professor, pesquisador e cidadão brasileiro por vontade própria: a educação popular, os movimentos sociais e a cidadania ativa.

Uma de suas maiores preocupações e contribuições no campo do estudo e pesquisa foi decodificar o ponto de vista científico dos intelectuais acadêmicos para que fosse assimilado pelas camadas populares e vice-versa. Passou muitos anos procurando conhecer e traduzir o “ponto de vista popular”, sobretudo em relação às questões da educação e da saúde. Com isso buscava atingir níveis efetivos de desenvolvimento das políticas públicas nas duas mencionadas áreas.

Veio à nossa terra umas duas vezes. Tinha muita curiosidade em conhecer a “terra do Sarney”, alvo constante na época de muita troça e curiosidade. Daqui mesmo a única referência que tinha era aquela e um certo conhecimento sobre alguns trabalhos de Ozanira Silva e Silva, professora da Universidade Federal do Maranhão, cuja obra começava a ser conhecida em círculos acadêmicos nacionais qualificados. Em um dos eventos que promovemos com a participação dele, lembrou-me Hiroshi Matsumoto à pouco, destinado a representantes de sindicatos e movimentos populares, de tanta gente que se fazia presente, fez com que alguns desatentos chegassem a indagar se ali era uma reunião onde iriam distribuir peixes aos pobres.

O grande laboratório no qual testava a veracidade de suas hipóteses científicas era o Cepel, o Centro de Estudos e Pesquisas da Leopoldina, uma organização da sociedade civil voltada ao apoio das ações dos movimentos populares localizados na aludida região da periferia do Rio de Janeiro. O triângulo amoroso de sua vida de estudioso era constituído de três pontos de referência: a pós-graduação em educação e a pós-graduação em história da UFF; a Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz e o Cepel da Leopoldina.

Nos limites desse triângulo mágico, produziu riquezas a respeito da educação popular, dos falares das classes subalternas, das favelas, do trabalho interdisciplinar e de tantas outras questões, como a do fracasso escolar. O Cepel evoluiu também, na cadência do seu mais ilustre inspirador. Integrou-se a uma rede de solidariedade da Leopoldina e virou um centro de documentação sobre as condições de vida do povo leopoldinense.

As mais recentes contribuições de Valla se situam no estudo e na construção metodológica de um processo de vigilância civil da saúde pública e na implantação de uma Ouvidoria Coletiva para lutar pelo respeito aos direitos humanos e da cidadania na Leopoldina.

Em seu comunicado do dia 8, dizia-me Célia que Victor Vincent Valla resistira bravamente às dores da enfermidade. Há mais ou menos uma década atrás fora vítima de um acidente vascular em pleno voo para uma conferência que faria no Paraná. Mesmo com as atividades motoras comprometidas, jamais se entregou e sempre procurou conduzir o seu projeto existencial até o momento em que pode respirar.

Para nós maranhenses defensores da democracia, da cidadania e da liberdade, vivendo atualmente uma das mais decisivas encruzilhadas políticas de nossa história, como povo e como militantes, o exemplo e a herança deixada por este brasileiro convicto nos chega em boa hora. Sobretudo pelo fato de ter sido uma espécie de “vala iluminada” que recolhia, o tempo todo, as águas doces que escorriam das terras da vida, conduzindo-as a solos áridos em favor do bem comum do povo brasileiro.

Para mim, de quem foi mestre, sentirei muita falta de suas perguntas matreiras e dele me lembrarei sempre toda vez que tomar um cafezinho, seja por puro deleite, ou para apagar os grandes incêndios da vaidade humana.

Náo se esqueça da gente, onde Você estiver, camarada amigo! Vamos precisar muito de sua ajuda para reinventar o Maranhão e assim podermos tê-lo outra vez como nosso hóspede de honra, esperando, obviamente, que depois da visita Você espalhe por aí que, finalmente, no Maranhão, chegou a vez do povo e que este chão não pertencerá nunca mais a quem quer que seja. A partir desse dia, fique certo, nunca mais recorremos à "infelicidade" para justificar os nossos equívocos políticos e omissões históricas. E aí Você dormirá em paz!