terça-feira, 29 de maio de 2012

O TORMENTO DE TÂNTALO



Por Raimundo Palhano


Acabo de ler o instigante post de Jhonatan Almada, publicado em seu blog, edição de 28 de maio, intitulado “São Luís precisa de outro caminho”, que me fez voltar ao túnel do tempo e lembrar o heroico período em que estive dedicado à pesquisa sobre a história da urbanização de São Luís, publicada em 1988, sob o título de “Coisa Pública: Serviços Públicos e Cidadania”, cujo recorte temporal prendia-se ao período de 1889-1930 e seu entorno, também identificado como Primeira República.


No provocativo texto defende a necessidade de uma “quarta via” para tirar a quadricentenária Capital do Maranhão do descaminho, uma vez que, a seu juízo, as três presumidas maneiras atuais de governação, pensadas e praticadas, não seriam capazes de encontrar a saída desse tortuoso e complexo labirinto.


Com efeito, segundo o arguto historiador, na arena política que informa o futuro imediato da aludida cidade, coexistiriam três estratégias em disputa: uma primeira, que situo como originária da ideologia dominante no Estado há algumas décadas, que congela a história e reinventa o sebastianismo restaurador, segundo a qual tudo o que se fez do fim da era de ouro até hoje não serviu para nada; uma segunda, localizada no governo estadual, baseada em uma espécie de visionarismo ilusório e ciclópico, inteiramente pautado na virtualidade de obras públicas faraônicas e suntuárias, mas de baixíssima efetividade social; e uma terceira vertente, emanada do governo municipal, que se utiliza dos meios de comunicação de massa para revelar, de forma sequenciada e programada, a cada dia, uma miríade de obras públicas importantíssimas, mas que, por forças sobrenaturais, permanecem “invisíveis” aos olhares desatentos dos cidadãos ludovicenses.


Na pesquisa a que me referi acima, que tinha como um dos objetivos verificar o tipo de cidadania que o processo de urbanização de São Luís reconhecia, ao se implantar o regime republicano, o dado mais marcante, recolhido do estudo, foi que a primeira república nunca aconteceu em São Luís, assim como as demais repúblicas proclamadas. A República Ludovicense foi, na verdade, mais uma das várias repúblicas que não houve neste país.


São Luís, com toda a certeza, simboliza uma das últimas capitais, senão a última, a fazer a reforma urbana, conforme demonstrado no estudo. Em sua totalidade, a modernização dos serviços de consumo coletivo, como água, esgoto, limpeza pública, melhoramentos de logradouros públicos, luz elétrica, transporte público ocorreram de forma tardia e sob intensa incapacidade de oferta, potencializadoras de crises políticas agudíssimas.


O conhecido panegírico que a distingue carinhosamente como “la petite ville aux palais de porcelaine” não passa de uma metáfora vazia, pois, longe disso, sempre foi uma cidade escancaradamente cindida entre o palácio e a palafita e profundamente marcada por desigualdades abissais entre os seus habitantes.


A cidade sempre teve uma “área nobre” e outra representativa de sua decadência urbana, revelada na falta de higiene e conforto; no predomínio da escuridão das lanternas; no ar viciado de milhares de fossas; na água escassa e de péssima qualidade, repleta de gérmens nocivos; na anacrônica viação urbana, a ponto de serem alvo de pilhérias. Antes e depois da proclamação da república, os serviços de infraestrutura urbana sempre foram inacessíveis à maioria da população.


O irreverente jornal “A Flecha” dizia, jocosamente, em 1879 que em São Luís “a gente anda na rua sem enxergar três dedos na frente do nariz”. Em trabalho dedicado à história das suas ruas e praças Domingos Vieira Filho afirma que na cidade, por séculos, os grandes higienistas eram o “vento amigo”, que exercia a função de gari e a água abundante da chuva, que lavava as ruas da urbe. Sem falar nas grandes epidemias, que, desde as mais priscas eras, dizimavam sua população, que, sem ter a quem recorrer, apelava a São Sebastião ou a piedosas procissões a espera do milagre divino.


A tardia reforma urbana de São Luís, que vai ocorrer mais de vinte anos depois da maioria das capitais, se deu tendo como referência uma miragem, no caso o contrato com a empresa norte-americana The Ulen Company, símbolo da renúncia cívica das elites políticas locais, incompetentes para resolver os problemas de insalubridade cada vez mais danosos, que, para tanto, tiveram que aceitar contratos leoninos, que escravizaram as finanças públicas locais em função das absurdas garantias que tiveram de oferecer à concessionária estrangeira. Um tormento que durará vários anos, indo praticamente de 1923 a 1946.


Como se vê são muito antigos os problemas relacionados à capacidade dos governantes da cidade em darem conta dos desafios colocados ao seu desenvolvimento. Além da falta de imaginação e criatividade, percebe-se, com muita clareza, a ausência de compromissos efetivos com o desenvolvimento ampliado da cidadania e o acesso democrático à coisa pública.


A esse respeito, pelo menos três fatos históricos podem ser lembrados, inclusive por já fazerem parte do anedotário local. O exemplo do Cais da Sagração é o primeiro. Pensado para promover melhorias urbanas, iniciado em 1841, além de ser a maior e mais destacada obra da cidade, passou 68 anos até ser plenamente concluído, isto em 1909. Rios de dinheiro, com toda a certeza, foram lançados à beira-mar. O Canal do Arapapaí, projetado inicialmente em 1742 para comunicar as águas da Baía de São Marcos com as do Rio do mesmo nome, nunca efetivamente foi finalizado, muito embora, no dizer de André Rebouças, “o escândalo chegou ao ponto de se desfazer à noite o trabalho executado durante o dia”. O grande João Lisboa, indignado, reverberava sobre o nefando Canal, destacando que se tratava da prova mais eloquente da “ignorância, incúria, corrupção, desleixo e concussão” dos governantes. O último episódio a servir de exemplo foi o da construção do Porto de São Luís: as discussões sobre a transferência do Porto do Cais para o Itaqui foram iniciadas em 1911 e só na década dos anos 1960 começam a se concretizar.


Em seu laborioso “Dicionário”, de 1870, César Marques escreveu um verbete sobre o calçamento das artérias de São Luís no qual remete o leitor ao Tormento de Tântalo, afirmando: “terminada uma rua, quase nunca são reparados os seus estragos e dentro de pouco tempo acha-se toda inutilizada.”


Tântalo foi um célebre personagem da mitologia grega. Admirado entre os deuses do Olimpo resolveu convidá-los a um banquete no qual a carne do próprio filho foi servida. Queria testá-los. Como eram oniscientes, descobriam e, escandalizados, rejeitaram o festim. Zeus, o deus dos deuses e dos homens, restabelece a vida do filho ministrando-lhe uma punição severa: a eterna insatisfação. Condenado a vagar em um vale rico em vegetação e água, não podia no entanto utilizá-las. Toda vez que se aproximava da água, ela escorria ou se tentava pegar um fruto, a vegetação movia-se para distante.


Por que o caminho de São Luís é tão difícil de encontrar? Por que até hoje prevalece o sentimento de incompletude diante de algo aparentemente muito próximo, mas que não se consegue achar? Será o destino da cidade o destino de Tântalo?


Encontrar o caminho de São Luís continua sendo um desafio presente. Como se tem dito deve-se começar desconstruindo os vários mitos que povoam a sua história. É uma cidade de carne e osso e tem uma história de vida marcada por grandes contrastes sociais, culturais e políticos. Sempre correu na alma de suas elites governantes e culturais muito mais sangue português do que sangue maranhense. Sua tradição cultural erudita tem como matriz o lusitano ultramarino.


Governar São Luís não é só decantar valores culturais mitificados é, sobretudo exercer a liderança ética, espiritual e política de uma nova identidade que reconheça e legitime sua diversidade étnico-racial, de gênero e cultural, identidades essas omitidas e negadas pela história dos vencedores.

sábado, 12 de maio de 2012

NEIVA MOREIRA: SEMEADOR DAS REBELDIAS

por Raimundo Palhano

Recolho o título desta pequena homenagem a Neiva Moreira, que, na madrugada do dia 10 de maio passado, voou como águia para a eternidade dos tempos, inspirado no comovente texto de Beatriz Bissio, sua ex-companheira de muitos anos, escrito provavelmente em 2010, ao saber do então estado extremamente precário em que se encontrava a saúde do grande maranhense.

Dos tantos qualitativos merecidamente pronunciados a seu respeito o da condição de rebelde fervoroso sobressai-se: sua alma insurgente, seu espírito indomável, o seu apego à bravura. Rebelde, acima de tudo, em relação ao poder trucidador dos opressores.

A sua ausência solar será sentida profundamente e, com certeza, jamais será preenchida à altura. Materializava o último sobrevivente de uma linhagem especial de jornalistas e políticos nacionais que pautaram a sua existência nos imperativos da luta sem tréguas em favor da ética, da justiça, da liberdade e da democracia. Mais do que isso: balizaram suas práticas sociais atuando como verdadeiros semeadores e apóstolos desses valores, hoje completamente pisoteados pela maioria dos que controlam o poder por esse mundo afora.

Como maranhense foi um dos melhores, não só pela cultura polida na militância e esmerada pela experiência existencial, como pela marca de uma escrita peculiar e autônoma, distante da tradição literária elitista e barroca, embasadores que foram de sua competência profissional.

No campo da atuação política, onde desaguaram os seus dotes e talentos, foi o líder na edificação de uma corrente de oposição democrática local, sem similar no passado e mesmo na história estadual, marcada pelo poder das oligarquias, controladoras da vida social, política e econômica da província, movimento este interrompido pelo golpe militar e ainda hoje por terminar.

Foi o mais internacionalista dos líderes políticos locais, sem nenhum que o ombreie desde então no seu papel de semeador da libertação dos povos e da edificação da democracia popular.

Condicionado pelo exílio, em pouco mais de quinze anos, construiu uma atuação jornalística e política internacional altamente respeitada, tanto pelas inovações técnicas, como, sobretudo, pelo combate sem tréguas ao imperialismo, ao neocolonialismo e à exclusão dos países do sul frente ao norte rico e dominador.

Em quase duas décadas manteve pulsante os Cadernos do Terceiro Mundo, uma publicação que deu voz aos países subdesenvolvidos e a suas lutas libertárias contra a opressão, criando e promovendo uma teia articuladora dessas demandas, até então operadas isoladamente, e uma consciência nova das injustiças praticadas no contexto da ordem econômica mundial, decisivas para mobilizar a juventude e as forças políticas de muitos países dominados pelo poder internacional.

O curioso em tudo isso é que Neiva, mesmo tendo atuado muito tempo fora, tanto em outros estados do Brasil como no exterior, jamais perdeu os seus vínculos telúricos. No mencionado texto Beatriz é taxativa: “... o Maranhão foi o eixo em torno do qual teceu a sua vida pública e sua militância política”. Foi, portanto provincial, jamais provinciano. Por tudo isso o seu nome figura não só na galeria dos grandes maranhenses de todos os tempos, como no museu vivo que guarda a memória dos que contribuíram efetivamente para a construção da identidade maranhense, nacional e terceiro mundista.

É o segundo grande quadro de referência histórica que se perde no Maranhão, a contar da morte de Jackson Lago. Enquanto este último construiu o seu legado de lutas partindo do particular para o geral, focando o torrão; Neiva vislumbrava o mundo todo sem perder o gosto pelo doce de buriti. Ambos, no entanto possuíam uma crença inabalável: a devoção ao Maranhão e ao seu povo.

Foram-se 94 anos de semeaduras, deitando sementes de rebeldia nesta terra maranhota, nesta terra Brasil. Uma vida longa e rica para servir de referência em um contexto marcado por desafios e perplexidades cotidianas.

A águia que agora chega ao seu destino faz emergirem com vigor dois dos seus principais atributos: a capacidade política e a militância comprometida. Como político a herança que deixa é preciosa pelas contribuições históricas ao desenvolvimento do Maranhão e do Brasil. Como militante aflora a disposição permanente pelo bom combate, aquele que nega o conformismo, a indiferença e a omissão.

O poeta preferido de Neiva, quando se encontrava exilado, era Gonçalves Dias. Segundo Beatriz, recitava a Canção do Exílio com tanta veemência e paixão que do poema o seu autor parecia ser. Temia, sem dúvida, a possibilidade de nunca mais ver a sua terra natal. Voltou e com ela envolveu-se e por ela viveu até o último suspiro.

Contemplando serenamente a ampulheta do tempo que Neiva deixa como legado e inspiração é fácil perceber a presença gonçalvina em tudo que fez e praticou. Os temores da Canção do Exílio felizmente não aconteceram, permitindo que a sua obra grandiosa florescesse.

Embora não tendo chegado a ver com os próprios olhos os sonhos todos que sonhou para o Maranhão, com toda certeza jamais deixou de acreditar que se pode sim mudar o mundo.

Provavelmente lia todas as noites, antes de dormir, antes de sonhar, a Canção do Tamoio, certamente com o pensamento voltado para o Timbira: “Não chores, meu filho; não chores, que a vida é luta renhida: viver é lutar. A vida é combate, que os fracos abate, que os fortes, os bravos, só pode exaltar". Boa viagem, Neiva Moreira. O sonho não acabou.