quinta-feira, 17 de março de 2016

A ESCOLA DE CANGOTE


Por Raimundo Palhano

            Cangote não é mais uma mancha na geografia de Barreirinhas. Localizado a cerca de 30 km da sede do Município, habitado por uma comunidade formada por algumas centenas de almas, que, pela vida afora, convivem mais com a mata e os seus mistérios do que com a civilização, padece de um isolamento antigo, atenuado pelas antenas parabólicas e uma estrada carroçável feita de depressões e sinuosidades recorrentes.

No dia 10 de março de 2016, o prefeito Léo Costa, filho da terra, fincou naquelas paragens do fim do mundo a maior e mais bonita de suas bandeiras: a escola digna municipal, uma iniciativa surpreendente e ousada, voltada a promover a educação de qualidade e tantos outros benefícios daí decorrentes, a comunidades acostumadas e conformadas com o abandono, o descaso e o desprezo histórico do poder público para com a educação dos seus filhos, jovens e idosos.

         Como uma miragem inatingível, ao cair da tarde, os convidados para a inauguração viram surgir, magicamente, no lugar do esqueleto em pedaços de uma escola rural indigente, como muitas espalhadas por esse Maranhão de todos nós, uma unidade escolar reluzente, limpa, projetada, com salas de aula climatizadas, coreto à porta para recepcionar os alunos, sala de diretor e professores, sistema de vigilância pela internet, lugar para alimentação escolar e para os livros de leitura, espaços de circulação e um terreno pronto para crescer.

         Antes do corte da fita inaugural e do descerrar da placa de bronze, símbolos maiores do sepultamento de um tempo de trevas e início de outro, feito de claridades, bem mais fortes que as dos fogos de artifícios anunciadores do fato extraordinário, o povo ali presente percorria o recinto, tocando-lhe a pele, sentindo-lhe o sangue correr por veias de esperança.

            O ato litúrgico pela ressurreição da crença no futuro, também antecedendo o rito de passagem, coordenado pelo prefeito Léo, o incansável, que também passou a ser confundido com Davi, o vitorioso sobre o Golias das indignidades contra as crianças, encheu-se, de repente, de contagiante inspiração, e vozes as mais diversas, desde autoridades da área, vereadores do povo, lideranças comunitárias e educacionais, estudantes, pais, anônimos e todas as línguas que não puderam se exprimir, explodem de júbilo, perplexidade e surpresa diante da graça recebida e por décadas negada àquela gente.

         E o prefeito Léo Costa falou por último, antes de dar a escola por inaugurada, fazendo agigantar-se o seu corpo e sua alma, como um missionário perfeito.

   Ensinou como multiplicar os pães, mesmo em tempos de trigo escasso e caro. Contou como fez para transformar a água pequena em cachoeiras de sonhos. E contou a sua estória e deixou claro porque estava fazendo história. E disse a todos que o milagre não estava acontecendo só ali. Lembrou os povoados de Bacuri, Passagem do Canto, Guarimã, Bartolomeu, Axixá, Andreza, Mumbuca, Boi/Borges, Piquizeiro e Baixa D’Água, comunidades que também souberam transformar cinzas e escombros em escolas municipais dignas. E foi além. Disse das muitas unidades que serão erguidas do chão batido, já programadas, contando com o apoio dos governos estadual e federal, estes últimos oriundos do PAR.

            Depois da solenidade, tocados pela festa popular e pelas muitas emoções, pôde-se perceber claramente que a solução não chega sem utopias e os milagres do impossível.

  A escola digna municipal profetizada por Léo Costa, que já deixou de ser dele, demonstra que as soluções são viáveis quando encontradas a partir das condições de vida predominantes contextualmente. Sem esse discernimento dificilmente o seu governo teria avançado tanto, principalmente nas áreas da educação e da saúde.

 O processo de povoalização da rede escolar e de interiorização da rede básica de saúde romperam uma tradição antiga, caracterizada pela inacessibilidade aos serviços públicos básicos aos povos do interior. Ao priorizar o emparelhamento dessas duas políticas públicas, o governo Costa, além de democratizar o acesso aos serviços públicos essenciais de educação e saúde, investe claramente na melhoria dos indicadores de desenvolvimento humano de Barreirinhas, criando as condições objetivos para a sustentabilidade do seu desenvolvimento.

  Escolas como a de Cangote representam o ponto de partida para uma reinvenção educacional. A cabeça brilhante do prefeito barreirinhense precisou escapar das armadilhas da onipotência dos métodos pedagógicos para chegar ao ponto que Célia Linhares denomina de ultrapassagem instituinte, aquela em que se supera a ditadura das imposições inquestionáveis e das definições consagradas, pelo mergulho profundo nas condições de vida de todos e de cada um dos seus conterrâneos, na busca incansável das soluções aos problemas cruciais daquela sociedade.

  São escolas dignas porque contribuem decisivamente em favor do direito de aprender das crianças dos Lençóis Maranhenses e de sua capital espiritual, Barreirinhas. Também porque rompem uma prática desprezível, pela qual o interior é tratado quase sempre como o lugar dos descartes das escolas das áreas urbanas.

  Cangote, enfim, é a parte posterior do pescoço, como todos sabem. Um nome de origem latina, como boa parte dos que formam a língua portuguesa. Significa capuz, cabeça. Quando muito musculoso, lembra arrogância e soberba. Tem, por outro lado, um poder natural, declarado pelos poetas: a gente tem que beijar.  O outro poder descoberto por Léo é o de resgatar a autoestima dos moradores, sem o que terão muitas dificuldades para superar os desafios de amanhã.

   E são grandes e pesados todos eles, embora ultrapassáveis. A miragem cultural que emergiu da terra árida se desfará em pouco tempo se não for preenchida por um projeto pedagógico competente e viável, inserido em um amplo programa institucional de desenvolvimento da educação do campo, unindo desejos e vontades dispersos por décadas, capazes de articular o sistema público de ensino em uma direção comum, na qual a escola e o direito de aprender das crianças, jovens e idosos seja o objetivo maior de todos.
 

   Se isso acontecer e, certamente, acontecerá, pois esta é a profecia do Prefeito e a vontade dos gestores educacionais e escolares, a experiência de Barreirinhas poderá ser uma saída inteligente e viável aos milhares de municípios brasileiros, onde estão os maranhenses, que, ainda hoje, passam pelo constrangimento cultural e político de não terem resolvido um centenário problema estrutural de suas políticas públicas: terem fracassado naquilo que poderia ser a maior de suas prioridades – garantir o direito de aprender e sobreviver de suas crianças.