domingo, 31 de março de 2019

HISTÓRIA E MENTIRA



Por Raimundo Palhano

Março parte para as calendas romanas, com ou sem lua nova, e nos deixa cada vez mais atônitos em relação ao nosso autoconhecimento histórico, cuja principal evidência é a ordem do dia presidencial, o édito do príncipe, mudando o enquadramento histórico do Golpe de 64, retirando-lhe o caráter de regime de exceção e atribuindo-lhe o novo status de movimento cívico em favor das liberdades e da democracia, sem o qual o Brasil teria implodido.

Como proclamar, não apenas nos quarteis e nas praças públicas, como querem, mas para quem viveu direta ou indiretamente o eclodir do Golpe de 1964 e a Ditadura Militar subsequente, como eu, mesmo ainda imberbe e usando calças curtas?

Fui da Frente Unida dos Estudantes do Calabouço, no Rio, quando morava e completava ali a minha formação de nível médio, tendo participado quase sempre das manifestações do movimento estudantil na Cinelândia, em geral dissolvidas por infantaristas e cavalarianos ensandecidos e suas bombas de gás lacrimogênio asfixiantes.

Não foi miragem. O processo durou 21 anos e deixou sequelas profundas no  Brasil, pelo visto ainda não superadas até hoje. Mas não fica só nisso. Porta vozes do governo reverberam com total convicção, certamente influenciados pelo canal Brasil Paralelo de Olavo de Carvalho, para uma nova taxionomia filosófica e política na qual fascismo e nazismo são classificados como práticas de esquerda, no que escandalizam a inteligência acadêmica internacional e suas centenárias universidades e instituições do saber.

Aqui não é relevante agora o mero confronto entre pontos de vista sobre  quem tem razão ou quem está errado. O que é apavorante é observar como esta pauta de absurdos ocupa a agenda do poder nacional de forma arrogante e cega, desconstruindo os ainda fracos pilares que sustentam a propalada civilização brasileira. 

Enquanto isso o Ministério da Educação bate cabeças, relações exteriores desmonta uma área das mais respeitadas do Brasil no Mundo, o Itamaraty, indo na direção perigosa do alinhamento automático com os Estados Unidos, o qual sempre foi criticado pela subordinação à “pax americana”, agravadas agora, sob a influência direta dos agentes e ideologias da era Trump.

Vive-se o epicentro de um novo processo de disputa por hegemonia política no Brasil, em que a coalizão atual, formada, entre outros, por fundamentalistas cegos de direita, financistas, militaristas, milicianos e vitoriosos nas eleições de 2018, a qual se desdobra insensatamente em torno do controle total do poder no país, submissa aos imperativos de uma falsa guerra de posições, pelas lacunas ou mesmo inexistência de um projeto de direção, no que seus integrantes se esmeram em obter, a todo custo, o apoio dos centros de poder global.

Não podemos negligenciar ou ficar indiferentes diante desse cenário que caminha, ao que parece, rumo ao tudo ou nada. Muitas das trapalhadas ministeriais são também decorrência de despreparo para o exercício de cargos de alta gestão no aparelho de Estado, fazendo com que a todos os protagonistas interesse o alinhamento à nova ordem econômica e política internacional.

Nunca imaginei experimentar, após mais de meio século desde 1964, que pudéssemos retroceder tanto em nosso inconcluso projeto de nação. 

Em meus estudos de pós-graduação nutri uma grande simpatia pelas ideias do historiador polonês Adam Schaff, autor de obra seminal intitulada “História e Verdade” que pôs abaixo muitas explicações sobre a natureza da cientificidade da história. Em brilhante análise sobre mundo objetivo e mundo subjetivo, aprofundou os fundamentos da história como ciência, demonstrando tratar-se de uma questão mais complexa do que se imaginava. 

Vendo as ideias mirabolantes que povoam as cabeças da coalizão no poder é um insulto à filosofia do conhecimento alguém propor a noção de que é possível mudar a consciência histórica de um povo em um passe de mágica, muito menos ainda por intermédio de uma ordem do dia.

Uma apostasia afirmar que o mundo anterior a nós não existe mais ou perdeu o tempo de validade. Na obra de Schaff fica claro que o aludido historiador evidencia, com muita propriedade, os malefícios de uma filosofia impregnada de conteúdos obsoletos e intencionais, na medida em que ainda repercutem com suas verdades na História. É inaceitável para Schaff o tipo de procedimento positivista na concretude dos fatos, e o idealista na explicação do processo histórico.

            Com efeito, o Presidente não podia ter viajado para Israel e ter passado o dia 31 de março de 2019 em em Tel Aviv para assinar os protocolos da abertura de um escritório comercial em Jerusalém. A Autoridade Palestina condenou a decisão do governo brasileiro e vai chamar de volta o seu embaixador no Brasil.

     Deveria ter ficado aqui para ouvir a voz das ruas e a reação aos seus comandos. Não pegou bem nem aqui e nem lá fora, pois serviu para aprofundar ainda mais a ruptura com a comunidade árabe, visceralmente ligada à cultura nacional, não apenas por questões econômicas, por serem os grandes compradores de carnes bovina e de frango, formando um mercado bilionário para a economia do país.

       Não pretendia me pronunciar diretamente sobre o assunto. A reação da inteligência brasileira foi intensa, havendo uma pletora de matérias importantes sobre o tema. No entanto, ao abrir a internet há pouco vi a foto do Aluísio Palhano carregada por uma manifestante em São Pulo. Foi para mim uma espécie de herói tupiniquim. Aí me veio à mente outros grandes brasileiros, como os três maranhenses homenageados pelo governador Flávio Dino; Maria Aragão, Manuel da Conceição e Tribuzi e outros muito próximos, ligados por laços afetivos, que sintetizo na figura do sonhador imortal Ruy Frazão Soares, caminhante do universo, irmão de Célia Linhares e cunhado de José de Ribamar Linhares, motivações perenes para continuarmos acreditando e lutando em favor de uma sociedade fundada na cultura da paz e do amor entre os seres humanos.

quarta-feira, 6 de março de 2019

ESCOLA DISPARATE 2



por Raimundo Palhano

Em A Civilização do Espetáculo, Vargas Lhosa utiliza como epígrafe uma frase metafórica do poeta chileno Vicente Huidobro “As horas perderam seu relógio”, para explicar como as coisas estão fora do lugar no mundo atual, em que tudo é tão surpreendente e inusitado.

Não é que tudo deva estar no lugar certo. Não gosto disso também. Uso aqui neste texto a mesma citação para revelar o impacto que me causou a mais nova “orientação pedagógica” do Ministro da Educação do Brasil, o professor colombiano, aquela sobre Hino, Fotos e Palavras de Ordem.

Os agudos problemas que informam a educação no Brasil requerem soluções mais criativas e programáticas do que a circunscreverem-se a costumes, como estas últimas, que, de certo modo, pretendem obrigar os estudantes a entoarem o Hino Nacional de um único jeito, por mais inspirador que possa ser o Hino Brasileiro.

Muito mais insólita é a ideia de fotografar o espetáculo, talvez para revelar o “patriotismo” das novas gerações nascidas das escolas sem partido.

Como se não bastasse, a bula ministerial culmina com a maior das exortações desses novos tempos brasílicos, que virou slogan do Governo Federal, frase que não repito aqui agora por ignorância indesculpável deste comentarista.

Quando as horas perdem seus relógios é preciso parar o tempo(impossível) ou reinventá-lo(o maior dos desafios existenciais). Conta-se o tempo a partir de um medidor, engenhoso ou primitivo, pois é preciso saber contar os grãos de areia que escorrem pela ampulheta.

Nada contra ensinar aos atuais e futuros brasileiros sobre os símbolos nacionais, como todo país civilizado faz, no mundo todo. O que preocupa é quando se coloca o carro na frente dos bois. Estamos tão atolados de problemas sem fim na educação pública brasileira que pautar este assunto como prioridade parece coisa de quem não conhece a realidade e o tempo.

O civismo não se adquire por decreto ou bulas insuspeitas. Brota do amor profundo que os cidadão constroem e sentem do convívio com a sua cultura e da energia vital emanada dos seus compatriotas. 

Civismo não prepara para a guerra, semeia a paz. Não é dizendo palavras de ordem sem profundidade que tudo muda magicamente. Pregar a guerra, pela brutalidade e insanidade que contém em si mesma, apaga a última chama cívica de um povo.   

Tudo muda. 

O carnaval de 2019 foi diferente de tantos outros. As Marchinhas podem até ser as mesmas, mas não são. Ninguém mais pensa que cachaça é agua e muito menos precisa usar máscara negra para declarar o seu amor de Pierrot a Colombina, mesmo porque ela continua de olho em Arlequim. 

Arlequim não chora mais pelo amor de Colombina no meio da multidão. Pode usar uma rede social.

No Brasil de 2019 todo mundo ainda leva a vida no arame, saçaricando, conforme a Marchinha de 1952: todos, a viúva, o brotinho e a madame. Até o velho na porta da Colombo, café centenário do Rio de Janeiro, e todos nós que estamos lendo estas palavras. Não há dúvida que o MEC também leva a vida no arame.

No entanto, não saracoteamos mais como antigamente.
Continuamos levando a vida no arame, sim, mas já sem as ilusões de Pierrot, Colombina e Arlequim.

Cachaça realmente não é água, não!.

Tudo mudaria só se a Aurora fosse sincera. ÔÔÔÔ, veja só que bom que era!