por Raimundo Palhano
A América Latina acorda hoje em silêncio. Na Argentina o sol fechou os olhos longamente. O tempo esqueceu a vida por algum tempo. O país todo chora e sente saudades. Tucumán subiu à mais alta de suas montanhas para ver se ainda era possível ver suas derradeiras pegadas. Estive lá em 2008 e fiquei fascinado pela música tucumana. Era o chão inspirador de Mercedes Sosa.
O Brasil não esconde as lágrimas. O sol das praias e a euforia olímpica da população não superam a falta que Mercedes faz. Com ela andávamos de mãos dadas. Argentinos, brasileiros, chilenos, uruguaios, venezuelanos e cubanos. Canção com todos, sim, rivalidades, nunca. “Todas as vozes, todas. Todas as mãos, todas. Todo o sangue pode ser canção no vento”.
O Maranhão deve chorar mais a perda de Mercedes porque vive uma encruzilhada. A oração que cantava a Deus para que não se seja indiferente precisa ecoar nos quatro cantos desta terra. Sua voz soberana cantou como ninguém os malefícios da injustiça e da mentira. “Eu só peço a Deus que a injustiça não me seja indiferente. Pois não posso dar a outra face, se já foi machucada brutalmente”. “... Que a mentira não me seja indiferente. Se um só traidor tem mais poder que um povo, que este povo não esqueça facilmente”.
Para mim é mais uma parte do meu coração de estudante que se despede para sempre. Os sonhos que sonhei com mais fervor foram os dos anos 1960, no fim da minha adolescência, sobretudo os do tempo em que estudava no Rio de Janeiro, em plena efervescência do movimento estudantil, motivado pelo combate à ditadura militar. Mercedes começou a despontar em 1965, na esteira da chamada nueva canción latino-americana. Cantava a união de todos os povos do nosso subcontinente. Sua música sempre plena de raízes crioulas, africanas, cubanas, andinas e espanholas nos fascinava a todos.
Mercedes é a grandeza e a beleza da mulher latino-americana, vitoriosa na luta contra os poderes do domínio masculino, ainda exacerbado em muitos lugares. Por isso seu canto sempre foi referencial na luta dos oprimidos e iluminou os sonhos dos jovens e dos revolucionários dessa parte do mundo.
Pelo menos duas mulheres foram inspiradoras de Mercedes, dentro do seu vastíssimo e valioso repertório musical. A primeira, a chilena Violeta Parra, autora dos clássicos Volver a los 17 e Gracias a la vida, plenas de lirismo e de amor. Violeta amargurada, que de tanto tormento, acabou dando cabo da própria vida; e Alfonsina Storni, imigrante européia, cuja saga está presente na composição de Ariel Ramirez e Felix Luna, que também, para fugir da dor, entrega-se ao suicídio.
Quem apagará da lembrança o refrão de Volver a los 17, puro hino ao amor: “... vai se envolvendo, envolvendo, como no muro a hera. E vai brotando, brotando, como o musgo na pedra. Como o musgo na pedra, ai sim, sim, sim.” Ou o lirismo puro de Gracias a la vida, pelos olhos, pelos ouvidos, pelo abecedário, pela marcha dos pés cansados, pelo coração, pelo riso e pelo pranto, sublimes em sua voz marcante, proclamando “...graças à vida que me deu tanto. Me deu dois luzeiros que, quando os abro, perfeito distingo o preto do branco e no alto céu seu fundo estrelado. E na multidão o homem que amo”. Ou ainda a comovente Alfonsina y el mar: “...um caminho sozinho, de penas mudas chegou até a espuma. Tu vais Alfonsina, com tua solidão. Que poemas novos fostes buscar?”.
Apagou-se a mais bela e sensível voz do protesto latino-americano contra o imperialismo e as ditaduras. Entre os anos 1970 e 1980 seu canto percorreu a rota das almas generosas da juventude latina. Deixou um legado único, um tesouro para dar sentido à vida de milhões de seres humanos abandonados à própria sorte.
Mercedes soltava a voz para afirmar que “Todo cambia”, que tudo muda. Tudo muda, até o rumo do caminhante. Parecia a profetiza da esperança a dizer que a dor e o sofrimento também podem acabar. Como esse canto embalava a crença em um mundo melhor e animava os inconformados a não desistirem dos seus sonhos de liberdade!.
Em Solo le pido a Dios Mercedes implora que a morte não a encontre um dia solitária, sem ter feito o que queria. Teve o seu desejo plenamente atendido. Fez tudo o que quis e muito mais. Fez por milhares de jovens, homens e mulheres do mundo todo, sobretudo para nós sul-americanos, o que mais necessitávamos: ajudou-nos a não sermos indiferentes à injustiça, à pobreza, à violência e à opressão política.
Estamos órfãos de Mercedes Sosa. Deixou-nos viva a sua arte e o seu canto, que continuarão embalando os sonhos nossos de cada dia e das gerações novas que estão chegando. Provavelmente continuará cantando para mulheres que dão ou deram suas vidas ao povo do Brasil e do Maranhão, como Nísia Floresta, Carlota Carvalho e Maria Aragão.
Tenho certeza que fitará o Maranhão de onde estiver. Não deixará que a fraqueza nos abata. Continuará pedindo a Deus que a indiferença saia para sempre de nossas vidas. Todo cambia!