Por
Raimundo Palhano
ÁPORO
Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.
Que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?
Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:
em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se
(Drummond)
Em grego aporia significa a
impossibilidade de discernimento. Um “branco” na capacidade de responder às
indagações de qualquer ordem. É quando se é tomado pela dúvida profunda, que se
transforma em impasse. É o verdadeiro impasse! Algo como ter que enfrentar o dilúvio
inesperado ou os rejeitos de minério de uma barragem que explodiu Brumadinho. Uma
espécie de beco sem saída. O Brasil vive esta síndrome de modo avassalador. Agora
o caldo derramou e todos nos sentimos fritos e afogados.
O poema em epígrafe é uma obra prima
de Carlos Drummond de Andrade. Foi composto em anos finais da II Guerra, e
integra os poemas que formam A Rosa do Povo, outro livro seminal. É a metáfora
mais adequada que encontrei para falar do estado de aporia, que paira solto nos
dias que correm. Consegue mesclar razão e mistério para desvencilhar-se das amarras
do impasse absoluto em situações de tormenta.
Áporo,
o inseto soterrado, que cava a terra para sair da condenação, cedo percebe que só
pelo emprego da razão(o ato de cavar) não encontrará a saída para o mundo. Precisa se transformar em orquídea, numa flor,
para aspirar a liberdade. Eis a magia do poema. A flor, misteriosamente, passa
a chamar-se Áporo, o mesmo nome do inseto, realizando, de maneira espetacular,
a fusão perfeita da crítica social, do existencialismo e da metalinguagem. A
poética propicia um fenômeno capaz de transformar o impasse em superação do intransponível,
único caminho à conquista da liberdade, representando a transição para o novo,
o renascer, a chegança às novas possibilidades de vida.
Não existe mais a racionalidade
misteriosa da poética drummondiana entre nós. A fonte secou e a inspiração
sumiu. Há um estado de impasse avassalador que retira a capacidade das pessoas
e das instituições de discernir sobre o atual bloqueio da terra e do pensamento.
Que
fazer, exausto, em país bloqueado, enlace de noite, raiz e minério?, indaga
o poeta itabirano ao seu labirinto interior.
País é mais que o universo. É um
multiverso inimaginável. Uma multiplicidade de universos, expressos na
confluência entre natureza, seres humanos e instituições do bem e do mal. País
bloqueado é o caos instalado.
Bloqueada,
a Amazônia queima sem parar, todos os dias uma nova labareda de fogo intenso,
que não se apaga. As vitórias régias verdes mudam suas vestes e ficam de luto,
permanentemente, sem a menor chance de renascimento.
Bloqueado, o Nordeste seco está
inundado de “paraíbas” e não deixa que o sol evapore as águas descontroladas de
um Velho Chico perplexo, principalmente agora quando os açudes ameaçam romper seus
paredões de vergalhões de ferro e cordas de plástico.
Bloqueado, o Sul não é mais
maravilha e suas cachoeiras e vinhedos estão ameaçados pelas hordas portenhos, inspiradas,
ao norte, na diáspora venezuelana e dos povos pemones.
Bloqueada São Paulo virou um grande
campo de futebol em que se praticam corridas de fórmula um, nas quais os carros
voam como galinhas, muito baixo para quem já fitou os Andes, disputando com o
Rio de Janeiro uma oportunidade de virar maravilha outra vez.
Bloqueado, o Itamaraty já não sabe o
que é diplomacia. Esmera-se na sublime arte de fritar hamburgueres, modernamente
dietéticos e diabéticos.
Bloqueado, o MEC submete a ciência,
a tecnologia e a educação aos interesses dos governantes e as cabeças confusas entram
em parafusos sinuosos, capazes de desgovernar o país.
Bloqueados, os partidos políticos
viraram fantasmas apavorantes, que assustam os seu próprios membros. Parecem
fantasmas que não existem e se escondem na xenofobia, na intolerância e no voto
midiatizado, substituindo irreversivelmente a democracia pela apostasia.
Bloqueado, o Ministério da Economia
sobrevoa o multiverso e promete auxílio aos que serão excluídos da arca dos sobreviventes,
negando tudo que existe para fugir da realidade. Tudo que aconteceu não existiu
e o que vai acontecer já aconteceu.
Bloqueado,
o céu recorre aos seus deuses, que se reproduzem ao infinito, e procura,
desesperadamente, uma oração que que dê conta dos martírios dos desempregados e
desvalidos.
O
pior dos bloqueios é o das nossas almas. Sem elas não transformaremos insetos
em rosas. Estamos perdendo a capacidade de distribuir afetos e de amar. O bloqueio
dos sentimentos torna a vida amorosa apenas em um inseto que cava sem achar
escape. Amores proibidos, amores silenciados, amores interrompidos e amores não
proclamados são as formas mais dolorosas dos bloqueios do espírito.
Mas
o tempo do sem passagem acabará, pois carrega a inexorabilidade da finitude. Significa
equilibrar-se em cordas: uma chegando ao fim, a aporia, e a outra procurando o
labirinto que levará a novas possibilidades, a criação e ao orquidário.