sexta-feira, 31 de agosto de 2012

SABBAS DA COSTA E AS CIRCUNSTÂNCIAS DA HISTÓRIA SOCIAL DO MARANHÃO


(Proferido por Raimundo Palhano, titular da Cadeira 39,
ao tomar posse no IHGM, em 27/08/2012)

ABERTURA. A cerimônia inaugural solicita do novo sócio, em seu discurso de posse, pelo menos a evidenciação de dois requisitos básicos: realizar, com o melhor dos fôlegos, o elogio ao Patrono, cuja cadeira ocupará ao ser empossado; e explicitar o seu agradecimento pela distinção, na forma de como pretende colaborar para o desenvolvimento do Sodalício.
  
Para atender a tais requisitos é necessário perscrutar a vida e a obra do Patrono, no caso Francisco Gaudêncio Sabbas da Costa, de preferência nas suas mais variadas latitudes e circunstâncias humanas, dentro dos limites inerentes a uma solenidade de posse acadêmica.

Proclamo, de imediato, a minha alegria, desvanecimento e honra de passar a integrar o IHGM. Unir-se a uma Agremiação que fará em 20 de novembro próximo 87 anos de existência reconhecida na história cultural maranhense é uma honra muito grande, sobretudo pelo expressivo repertório de feitos em favor do conhecimento científico, nos campos da História e da Geografia do Maranhão.

Em seu Estatuto estão presentes os compromissos com a Memória e com a História do Maranhão e do País. No primeiro plano, a guarda de acervos documentais, a preservação do patrimônio histórico e cultural e a divulgação do esforço feito pelo Instituto para o cumprimento de sua missão. No segundo, o lugar da História, expresso nos desafios de conhecer e traduzir a dinâmica da formação social maranhense, suas especificidades, peculiaridades e complexidades desafiadoras.

A CONTRIBUIÇÃO INTELECTUAL DE SABBAS DA COSTA. O elogio ao Patrono procurarei fazê-lo de forma refletida, sobretudo empenhado em estabelecer um diálogo respeitoso e crítico com o legado deixado como herança por Francisco Gaudêncio Sabbas da Costa, pouco conhecido das gerações atuais, patrono da Cadeira 39, que agora, com muita honra e responsabilidade, passo a ocupar.

Motiva-me, sobretudo o desejo de situar historicamente a sua contribuição intelectual no contexto maranhense e, em especial, a sua relevância intrínseca, nas dimensões em que teve atuação destacada, principalmente no jornalismo e na literatura, nesta última atuando como cronista, romancista, dramaturgo e crítico teatral.

Nascido em São Luís, no dia 25 de novembro do ano de 1829, e aqui falecido, em outubro de 1874, o escritor não teve vida longa, tendo perecido ainda jovem, aos 45 anos.

Sobre a sua genealogia e biografia pessoal apresento um rápido perfil, começando pelo fato conhecido de ter desposado a soprano italiana Margarida Pinelli Sachero, prima-donna da Companhia Lírica Marinangelli, da Itália. Nessa época, meados do século XIX, vinham da Europa para São Luís muitas companhias líricas, óperas, entre outras, com seus sopranos, prima-donnas e barítonos. Margarida era casada com Melchior Sachero, tenor italiano que faleceu em Belém, vítima de febre amarela, após temporada em São Luís, cidade onde Margarida conhecera Sabbas e fizera amizades, vindo então ali se radicar em decorrência do matrimônio com o teatrólogo maranhense.

Sabe-se pouco sobre a trajetória profissional de Sabbas da Costa, além de suas atividades artísticas nas áreas da literatura e do jornalismo. Outro fato conhecido é que foi conferente nas Alfândegas de São Luís e Belém e que pertencera ao tronco familiar do português João Gualberto da Costa, conforme César Marques.

Nascido em Lisboa em 1793, de ascendência nobre, João Gualberto instalou a primeira fábrica a vapor, de beneficiar arroz, no Maranhão, em 1817, denominada Feliz Empresa. Gualberto é considerado o primeiro industrial “adiantado” do Maranhão. Em 1848 o seu irmão Francisco Gaudêncio da Costa entra para sócio do empreendimento.

Outra atividade de Sabbas da Costa, no campo empresarial, refere-se à sua participação em Exposições mercantis. É conhecido o fato de o Maranhão ter se destacado na realização de Exposições. As primeiras Exposições Universais foram as de Londres(1851 e 1862) e Paris(1855 e 1867). A Exposição do Maranhão realizou-se em 1871, denominada Festa Popular do Trabalho. O Patrono figura como um dos promotores da Exposição maranhense. A primeira Exposição Nacional só viria a acontecer em 1896.

Sabbas integrou o primeiro Grupo Maranhense, cujo recorte temporal correspondeu ao período de 1832-1868, tendo o Romantismo como princípio estético. Dele fizeram parte os principais ícones da nova elite cultural local: Gonçalves Dias, Odorico Mendes, João Lisboa, Sotero dos Reis, Trajano Galvão, Belarmino de Matos, Sousândrade, Gentil Braga, Gomes de Sousa, Henriques Leal, César Marques, Candido Mendes, entre outros.

Os Grupos iniciais tinham como características o fato de boa parte de seus representantes terem estudado fora. No país; em Salvador, Recife e Olinda e, na Europa; especialmente, em Lisboa, Coimbra, Paris e Londres, por isso tendo também, por bom tempo, os referidos representantes morado fora da Província.

Fez parte, como posto em evidência, do mais expressivo ciclo literário e cultural do Maranhão, responsável pela constituição de uma plêiade de homens de letras e intelectuais sem similar em sua história social, independentemente do valor que se possa atribuir ao legado deixado como herança.

Levantamentos, ainda incompletos, sobre a produção intelectual de Sabbas da Costa revelam as seguintes obras, tidas como as principais de sua lavra: (1)Francisco II ou a Liberdade na Itália, drama em 5 atos, 1861(1881); (2)Pedro V ou o Moço Velho, drama em 5 atos, 1862; (3)A Buena-Dicha, comédia em 2 atos, prólogo e epílogo, 1862; (4)O Escritor Público, comédia em 1 ato, 1862; (5)Garibaldi ou o seu Primeiro Amor(6)O Barão de Oyapock, drama em 3 atos e prólogo, 1863; (7)Beckman, drama histórico em 7 atos, 1866; (8)Anjo do Mal, drama, 1867; (9)Os Bacharéis, comédia em 3 atos, 1870; (10)O Amor Fatal, (11)Rosina, romance; (12)Revolta, romance histórico; (13)Os Amigos, romance, em 25 capítulos; (14)Jovita, novela, em 3 capítulos; (15)Jacy A Lenda Maranhense, esboço de romance, em 14 capítulos.

Outras obras publicadas em jornais da época também podem ser destacadas: (a)O Encontro; (b)Teatro de São Luís; (c)Como Nasce o Amor; (d)Simão Oceano; (e)A Madrugada; (f)Maria do Coração de Jesus; (g)O Baile; (h)O Dote; (i)O Adeus; (j)Não Brinques; (k)Sinfrônio; (l)O Homem do Mal; e (m)Encontro de Ronda com a Justiça; entre as que foram possível mapear.

A produção literária de sua autoria mais conhecida destaca as obras Jacy, a respeito do extermínio de índios e suas lutas contra os opressores, principalmente os proprietários rurais; o romance Jovita, sobre uma jovem cearense que se inscreve no antigo Batalhão dos Voluntários do Piauí; o romance Os Amigos, que alguns também classificam como crônicas, nas quais aborda a situação do comércio, das casas de alimentação, suas leituras preferidas e aspectos da vida cultural maranhense.

O drama Francisco II foi impresso em 1861, pela Tipografia Frias, uma das mais importantes da Província. Já no ano seguinte, Sabbas publica o drama D. Pedro V ou o Moço Velho. Em seguida, edita também duas outras obras, as comédias Escritor Público e A Buena-Dicha.

Alguns anos depois, a Tipografia de Belarmino de Matos imprime duas de sua peças, no caso Barão do Oyapock e Garibaldi ou o seu Primeiro Amor. Barão do Oyapock trata dos conflitos de um homem de baixa condição social, que enriquece graças a um assassinato, roubos e outros crimes. Conseguiu ascender posições na escala social sem, contudo, introjetar em seu caráter sentimentos superiores. O seu filho, em razão disso, vivia em permanente tormento. Toda a ação gira em torno de um juiz corrupto e de um escravo revoltado que consegue envenenar o Barão. Os detalhes da descrição dos fatos levaram a critica da época, em tom irônico, a lamentar que o Autor não se tivesse filiado à escola Realista, então muito em evidência, dada a crueza da narrativa.

Foi colaborador em A Casca da Caneleira, figurando, sob o pseudônimo de Golodron de Bivac, como um dos onze autores da obra, em 13 capítulos, todos os autores vinculados à escola Romântica, que também recorreram a pseudônimos. Trata-se de uma novela coletiva maranhense, ou, para os autores, uma escrita para puro divertimento, um passatempo literário. Joaquim Serra e Gentil Braga, figuras respeitadas como folhetinistas, escreveram sob os pseudônimos de Pietro de Castellamares e Flávio Reimar, respectivamente.

Boa parte da obra do Patrono foi publicada pelo Semanário Maranhense, periódico que, nos seus 54 números, divulgou a cultura maranhense, tendo como colaboradores quadros como Antonio Henriques Leal, Celso Magalhães, César Marques, Gentil Homem Almeida Braga, Joaquim Sousândrade, Joaquim Serra, Pedro Nunes Leal, Teófilo Dias,  e outros tantos, todos notabilizados pela contribuição literária e cultural deixada para a posteridade.

Para parte da crítica Sabbas foi um dos primeiros a introduzir o interesse pela literatura folhetinesca, como vinha acontecendo no Rio de Janeiro. Por isso, alguns epígonos o classificam como o fundador da novelística na Província, pois os outros prosadores de ficção virão somente após ele, sendo Gonçalves Dias a única exceção, posto que desde 1842 trabalhava na produção da sua Memórias de Agapito. Não há, todavia consenso sobre isso. Críticos há que não enxergam em Sabbas tal pioneirismo, pois consideram menor o valor de sua obra literária no aludido gênero. O romance Os Amigos, com 25 capítulos e a novela Jovita, com apenas 3 capítulos, são as obras que levaram Sabbas à condição de fundador da novelística e do folhetim na Província.  

Publicou novelas, folhetins e história do Teatro São Luís, mesmo dividindo opiniões entre os que apreciavam a sua arte e os que não o faziam. O drama de sua autoria Anjo do Mal foi elogiado por Joaquim Serra. Quem escrevia peças então eram Joaquim Serra, Gentil Homem, Celso Magalhães, Euclides Faria, Artur e Aluísio Azevedo, João Afonso Nascimento. Isto em meados do século XIX.

Deve-se destacar, por oportuno, que Sabbas da Costa era também um dos que escreviam no Jornal de Timon(1852-1855), de João Francisco Lisboa, publicado pela Tipografia de Belarmino de Matos.

A marca destacada de sua biografia intelectual liga-se ao teatro. Foi um dos precursores do teatro maranhense, antes de Artur Azevedo. Sua obra, no campo da dramaturgia, é das mais copiosas, incluindo-se aqui o seu trabalho de crítico teatral e animador cultural.

Percebe-se no Autor uma peculiar identificação com a dramaturgia grega, pois seus textos parecem nitidamente escritos para serem representados por atores. Drama é uma palavra grega que significa ação, representação da ação. Tanto na tragédia, na comédia, no melodrama ou na farsa, para os gregos clássicos, o centro da ação é o conflito. Sua obra não escapa dessa influência. Os dramas produzidos por Sabbas ajudaram a reforçar a predileção local por peças altamente dramáticas e fortemente sentimentais.

Nos meios culturais locais, em especial no ambiente teatral, vivia-se o apogeu do Melodrama, começando pelo romantismo de fundo burguês. Convém lembrar que até 1847 os jornais eram omissos em assuntos de arte e dramaturgia: se limitavam a temas políticos e a publicação de atos governamentais. A partir da segunda metade dos anos mil e oitocentos a situação já estava completamente mudada. Espetáculos teatrais de caráter lúdico-religioso, sacro, comédias despontam no cenário artístico.

Contribuição do Patrono à Cultura Maranhense
É pertinente a afirmação de que o mundo intelectual e literário maranhense no século XIX deveu muito aos periódicos e ao parque gráfico existente. Permitiram o escoamento da produção literária da Província, muitas de padrão discutível, diga-se, estimulada pela riqueza material de suas elites sociais e econômicas, e pelo investimento feito no refinamento educacional de seus descendentes.

Convém destacar que até 1870 no Maranhão e no Brasil de um modo geral, o livro ainda não era o meio mais eficaz de difusão da cultura letrada. Os valores do processo civilizatório e a inculcação de tradições locais dependiam fortemente dos jornais e periódicos locais.

Percebe-se assim que o modelo literário maranhense decorreu da fusão do jornalismo, principalmente político, com as letras e seus profissionais. Um jornalismo voltado para o cultivo das belas letras, sempre destacando a distinção cultural da Província. Colocava à disposição dos leitores contos, novelas, artigos historiográficos e econômicos, estes mais raramente; poemas, crônicas, crítica literária, preleções, cursos, entre outros. Traziam à luz a literatura e as ideias que circulavam, sobretudo em Portugal e na Europa. Deles emergiram o gosto literário, artístico e cultural-científico, além da simpatia pelo mundanismo. Não eram apenas espaços para o debate de questões políticas. Os periódicos maranhenses tentaram de toda maneira produzir um discurso de exaltação da inteligência local, na perspectiva de tornar-se contribuinte destacado no processo de construção da identidade e da cultura nacional, a partir da distinção cultural da Província.

Além disso, outras variantes devem ser levadas em conta na definição desse pano de fundo histórico. No plano da formação social, o Maranhão do século XIX era heteronômico, recebendo de outrem as leis e procedimentos a serem seguidos; e exogênico, sendo uma sociedade originada e dependente de fatores externos. A exogenia não se limitava apenas à dependência ao mundo exterior. Do exterior provinham também as ideias com as quais se abastecia, traço este ainda presente na cultura local. Essa situação se agravava mais ainda pela instabilidade política. Ao longo dos 48 anos que vão de 1841 a 1889 estiveram à frente do governo, entre governadores e vices, quase cem mandatários.

Vivia-se nitidamente o processo de construção de uma nova ordem social e política. Estavam em franca germinação as novas instituições sociais e políticas, associadas à constituição de uma nova camada dirigente e seus valores instituintes.

Francisco Gaudêncio Sabbas da Costa e sua obra são produtos dessas circunstâncias materiais e subjetivas. Os aspectos constitutivos da ideologia dominante estão presentes em seus dramas, novelas, folhetins, crônicas e críticas teatrais. Em todas prevalecem a visão de mundo das elites, a pura e simples transposição da ideia do romantismo e do parnasianismo como alternativas à industrialização europeia; o naturalismo, o realismo. Em todos os lugares de sua contribuição a forte e fluente presença de uma construção intelectual e literária baseada, flagrantemente, na importação ideológica e cultural.

Esse traço não diminui ou distingue a contribuição intelectual de Sabbas. Era comum no ambiente cultural e literário da época, sendo poucos aqueles que de fato erigiram um obra própria e diferenciada. O que interessa vai além de tudo isso: é qualificar em sua obra as linhas de contribuição para a formação social do Maranhão e para as instituições culturais gestadas. No caso específico de Sabbas destaca-se, sobretudo a sua contribuição no campo das artes e das letras, muito mais que na área de interesse do Instituto Histórico e Geográfico, ou seja, os campos dos estudos e dos conhecimentos científicos propriamente ditos.

Em seu afamado livro Sessenta Anos de Jornalismo, 2ª Edição, publicado em 1883 por Faro e Lino Editores, no Rio de Janeiro, Joaquim Serra destaca as principais virtudes de Sabbas da Costa. No capítulo sobre o ano de 1860 evidencia a contribuição do Autor no periódico Marmotinha, de José Mathias Alves Serrão. Um periódico de variedades que publicava artigos amenos, jocosos, crônicas locais e poesia. Serra, um jornalista rigoroso para os padrões existentes, descreve Sabbas como um infatigável trabalhador da cultura e das letras, colaborador assíduo de vários jornais e periódicos, nos quais se dedicava especialmente à crítica teatral, sem esquecer-se de destacar os romances que publicava em folhetins e depois em livros. Como bom agitador cultural e infatigável trabalhador das letras que o era, Sabbas nunca foi considerado, todavia uma unanimidade pela crítica.

Em sua expressão maior, a crítica destaca como uma das mais consistentes contribuições de Sabbas o romance Os Amigos. Mesmo permanecendo a dúvida quanto ao valor literário da obra, destaca a sua importância pelas informações que reúne sobre a sociedade maranhense à época, sendo apontado como um vigoroso retrato da vida maranhense no século XIX, no que também se presta, possivelmente, para legitimar a condição de Patrono de uma cadeira no IHGM.

Para escrever com mais segurança e conhecimento de causa o presente Elogio procurei também ler o máximo que pude partes da obra acessível do Autor, com o objetivo de formar um juízo mais pessoal sobre a mesma. Em Jacy, por exemplo, é claramente perceptível o seu propósito em mostrar que era “brasileiro” e que escrevia sobre o que seria a “cor maranhense”, ou seja, sobre as especificidades do que é inteiramente local. Um texto plenamente ufanista sobre o Maranhão e o Brasil, no qual se encantava com a imensidão de uma natureza santa e imaculada. Em sua narrativa a Província do Maranhão nada mais era do que “uma terra majestosa, sublime e amena...um prodigioso recanto do Brasil”.

Em muitos dos seus textos é marcante o grau de detalhamento que emprega em suas narrativas. Em obras dramáticas, os conflitos são trabalhados com extremada minucia. O estatuto da escravidão e a visão do colonizador não são criticados explicitamente; ao contrário, são constantemente legitimados na composição dos tipos que formam a sua literatura. O poder do Senhorio reina absoluto e é tratado com naturalidade. O detalhamento dos conflitos contribuem muito para que se tenha uma visão precisa dos costumes, juízos de valor e preconceitos presentes na sociedade inclusiva.

O dilema de Sabbas e de toda a sua geração, fonte primária do semióforo inventado de um Maranhão culto como os gregos clássicos, é não terem dado conta das questões que cindiam a sociedade maranhense oitocentista.
Alheios a essas questões, atravessadas longitudinalmente pela tirania deprimente da escravidão de negros africanos, habitavam olimpos e parnasos imaginários, completamente distantes das pulsações de uma formação social em mutação e desconstrução.

Foram poucos os que perceberam esse processo e se lançaram na ousadia de imaginar uma formação maranhense que pusesse fim às hetenomias e exogenias originais. As vozes de João Lisboa e Joaquim Serra foram fracas frente à algazarra dos poetas do Olimpo. Mesmo a grandiosa plêiade de notáveis de então, como Dias, Odorico, Lisboa, Sotero, Souzandrade na literatura e Gomes de Souza e Custódio Serrão nas ciências, não farão a ruptura com os mecanismos de invasão cultural e importação ideológica.
Fragmentos do reacionarismo não desaparecerão facilmente, assim como a predominância de recorrências filosóficas flagrantemente piegas não deixarão de existir, provavelmente fatores retardatários da introdução modernista no Maranhão contemporâneo, inviabilizadoras do desabrochar local de um 1922 maranhense que não houve.

As visões estéticas presentes no legado e no acervo cultural erudito maranhense ainda hoje suscitam dúvidas quanto à autenticidade “nacional” e contextual.

EM QUE ESPERO CONTRIBUIR. Almejo corresponder à generosidade de terem me escolhido para compor os quadros desta Casa. Cheguei aqui por obra do acaso, ao ser convidado a queima roupa pelo Professor Josemar Raposo, em evento literário, nos pátios do Palácio Cristo Rei, relacionado ao lançamento de obra autoral de Aldy Mello de Araújo, agora confrade.

Generosidade que prossegue e se expande no acolhimento da Presidente Telma Bonifácio Reinaldo aos pareceres favoráveis das confreiras Dilercy Adler e Madalena Neves, conhecidas por terem corações bem maiores que o permitido, projetados finalmente na homologação das ilustradas e ilustrados confreiras e confrades que atualmente dão vida a esta valorosa Instituição.

Confesso o grande esforço que fiz para, em menos de seis meses, conhecer e me apresentar a Sabbas da Costa. Tomaram-me quase o tempo todo para que produzisse essa pequena homenagem, restando assim quase nenhum tempo para os encômios a Luís Alfredo Neto Guterres Soares, primeiro ocupante da Cadeira 39, na condição de sócio honorário, a mesma que passo a assumir agora, como fundador, decorrência da condição de Sócio Efetivo. Prometo também saldar essa dívida mais adiante, pois se trata de um estudioso da cultura e da realidade maranhense de grande valor, não cabendo assim quaisquer apreciações aligeiradas.

O precocemente esquecido Olavo Correia Lima, um polemista nato, afirmava que a história maranhense era uma das mais descuradas do Brasil. Achava que dela pouco caso se fazia. A ideia do maranhense culto decorre de um mito deliberadamente inventado, no bojo de uma suposta ancestralidade francesa. A luta contra um passado imemorial que ainda hoje serve para reforçar mitos e estereótipos não deve ser descurada jamais, cabendo a este Instituto um papel proeminente nesse enfrentamento.

Por força do descaso inexplicável do Maranhão com a sua história pensa-se, de modo geral, que se trata de um processo histórico linear. O desprezo com o patrimônio arqueológico pré-colonial é indescritível. Existem escavações no Maranhão que remontam a nove mil anos. Há um patrimônio arqueológico e antropológico pré-colonial da Ilha e demais territórios que precisa ser pesquisado e traduzido amplamente.

É mais do que urgente que se incentivem releituras da historia maranhense, sendo imprescindíveis para tanto a força de instituições vivas como universidades, institutos de pesquisa e de Institutos como o nosso. No surpreendente torrão maranhense gestou-se um fenômeno extraordinário, que ainda hoje continua pedido para ser revirado de cabeça para baixo e passado a limpo: como foi possível, em uma sociedade de analfabetos e excluídos, se implantar um “Olimpo intelectual” com bagagem tão vasta, sofisticada e variada?

Provavelmente a explicação da egossintonia que ainda hoje predomina na sociedade tenha origem nesse paradoxo secular. Por que a maioria aceita passivamente as desigualdades sociais, a falta de educação, a falta de ética, a falta de equidade?  Como se explica uma Atenas indiferente ante o que foi a maior das infâmias da história nacional: o genocídio de milhões de índios e de negros africanos torturados e escravizados?

Precisam-se construir novas subjetividades democráticas para uma melhor adequação ao mundo da diversidade que hoje impera. Não é mais possível repetir a façanha histórica ocorrida no período oitocentista de se erigir uma cultura tida como superior, pela erudição dos seus agentes, deixando de fora os dois principais temas do século XIX: a abolição e a democracia. Com toda a certeza, desse fato é possível encontrar as raízes históricas do atraso política, pois essa realidade produziu, entre outras coisas, um eleitorado incapacitado ao exercício do seu papel político, realidade ainda não superada, pois, ainda hoje, continua assombrando a sociedade atual.

No diálogo que foi mantido com Francisco Gaudêncio Sabbas da Costa, percebeu-se facilmente que em sua obra e na de seus contemporâneos, faltou um olhar atento para perceber as distinções entre o processo de invasão cultural e o processo de transmissão cultural. O esforço de Sabbas em demonstrar que era brasileiro e que seus personagens refletiam a cultura local denotam isso.

O Maranhão era português, demorou a aderir à independência e tinha em São Luís uma influente colônia lusitana, que controlava a economia, por meio do comércio. Esses vínculos orgânicos não se romperam com a Independência facilmente. Os habitantes da Província não passavam de meros espectadores do suposto mundo civilizado, sobretudo em relação à Europa e Portugal. O fenômeno da “portugalização” foi determinante no Maranhão. Orgulhavam-se as elites, em pleno final do século XIX, de terem sido colonizadas por europeus. Um despautério, na visão de alguns. São Luís nunca perdeu a condição de “arrabalde da américa”, e o Maranhão sempre foi uma “rochela de Portugal”, expressões de Antonio Vieira cunhada em meados do século XVII.

Por isso é forte a figura do redentorismo no Maranhão. A atemporalidade da história do Maranhão sempre foi a forma preferida da narrativa dos dominantes. É uma história “para sempre”. Para seus cultuadores, a melhor forma de preservar a memória maranhense é encher o Maranhão de estátuas. Ainda hoje as interpretações sobre a história do Maranhão continuam atreladas a esse pretensioso pensamento intelectual.

Era secundário o interesse em buscar entender as condições do espaço social maranhense e os seus desafios.

Diante dessas reflexões finais surgem-me à frente as palavras amargas e, ao mesmo tempo, verdadeiras e esperançosas de Eduardo Galeano a respeito da América Latina: “somos caricaturas de modos de vida que nos impuseram e impõem de fora”. Nessa mesma linha, interpretando o Brasil e os seus dilemas, Milton Santos afirmava, com muita propriedade: “ainda não descobrimos as formas de pensar a partir do nosso modo de ser”.

Todos os que formam esta Casa sabem e conhecem melhor do que eu os dilemas e desafios aqui levantados. Espero fazer parte dessa constelação e oferecer o melhor do meu trabalho.

Uma última palavra, antes de encerrar e agradecer pela resignação com que me ouviram. Acredito firmemente, inspirando-me em Hanna Arendt, que não nascemos apenas para morrer. Nascemos para recomeçar. Sei também, conforme o célebre poema-epitáfio de Jorge Luis Borges, que desde o nascimento “já somos a ausência que seremos”. O que não sei ainda é se seremos capazes de mudar o destino. Continuo acreditando, apesar de tudo.

Arlete Machado, em momento de sublime inspiração, descreveu São Luís como uma ilha que se desfaz em salitre. Espero, do mais profundo dos meus sentimentos, que essa ameaça cruel não atinja os corações e mentes daqueles que lutam pela reinvenção das bases constitutivas da história maranhense, afastando para bem longe a ferrugem que decompôs as representações sobre o passado do Maranhão, mas que ainda hoje sobrevivem como caricaturas assustadoras em nossa realidade.

Muito obrigado!

terça-feira, 29 de maio de 2012

O TORMENTO DE TÂNTALO



Por Raimundo Palhano


Acabo de ler o instigante post de Jhonatan Almada, publicado em seu blog, edição de 28 de maio, intitulado “São Luís precisa de outro caminho”, que me fez voltar ao túnel do tempo e lembrar o heroico período em que estive dedicado à pesquisa sobre a história da urbanização de São Luís, publicada em 1988, sob o título de “Coisa Pública: Serviços Públicos e Cidadania”, cujo recorte temporal prendia-se ao período de 1889-1930 e seu entorno, também identificado como Primeira República.


No provocativo texto defende a necessidade de uma “quarta via” para tirar a quadricentenária Capital do Maranhão do descaminho, uma vez que, a seu juízo, as três presumidas maneiras atuais de governação, pensadas e praticadas, não seriam capazes de encontrar a saída desse tortuoso e complexo labirinto.


Com efeito, segundo o arguto historiador, na arena política que informa o futuro imediato da aludida cidade, coexistiriam três estratégias em disputa: uma primeira, que situo como originária da ideologia dominante no Estado há algumas décadas, que congela a história e reinventa o sebastianismo restaurador, segundo a qual tudo o que se fez do fim da era de ouro até hoje não serviu para nada; uma segunda, localizada no governo estadual, baseada em uma espécie de visionarismo ilusório e ciclópico, inteiramente pautado na virtualidade de obras públicas faraônicas e suntuárias, mas de baixíssima efetividade social; e uma terceira vertente, emanada do governo municipal, que se utiliza dos meios de comunicação de massa para revelar, de forma sequenciada e programada, a cada dia, uma miríade de obras públicas importantíssimas, mas que, por forças sobrenaturais, permanecem “invisíveis” aos olhares desatentos dos cidadãos ludovicenses.


Na pesquisa a que me referi acima, que tinha como um dos objetivos verificar o tipo de cidadania que o processo de urbanização de São Luís reconhecia, ao se implantar o regime republicano, o dado mais marcante, recolhido do estudo, foi que a primeira república nunca aconteceu em São Luís, assim como as demais repúblicas proclamadas. A República Ludovicense foi, na verdade, mais uma das várias repúblicas que não houve neste país.


São Luís, com toda a certeza, simboliza uma das últimas capitais, senão a última, a fazer a reforma urbana, conforme demonstrado no estudo. Em sua totalidade, a modernização dos serviços de consumo coletivo, como água, esgoto, limpeza pública, melhoramentos de logradouros públicos, luz elétrica, transporte público ocorreram de forma tardia e sob intensa incapacidade de oferta, potencializadoras de crises políticas agudíssimas.


O conhecido panegírico que a distingue carinhosamente como “la petite ville aux palais de porcelaine” não passa de uma metáfora vazia, pois, longe disso, sempre foi uma cidade escancaradamente cindida entre o palácio e a palafita e profundamente marcada por desigualdades abissais entre os seus habitantes.


A cidade sempre teve uma “área nobre” e outra representativa de sua decadência urbana, revelada na falta de higiene e conforto; no predomínio da escuridão das lanternas; no ar viciado de milhares de fossas; na água escassa e de péssima qualidade, repleta de gérmens nocivos; na anacrônica viação urbana, a ponto de serem alvo de pilhérias. Antes e depois da proclamação da república, os serviços de infraestrutura urbana sempre foram inacessíveis à maioria da população.


O irreverente jornal “A Flecha” dizia, jocosamente, em 1879 que em São Luís “a gente anda na rua sem enxergar três dedos na frente do nariz”. Em trabalho dedicado à história das suas ruas e praças Domingos Vieira Filho afirma que na cidade, por séculos, os grandes higienistas eram o “vento amigo”, que exercia a função de gari e a água abundante da chuva, que lavava as ruas da urbe. Sem falar nas grandes epidemias, que, desde as mais priscas eras, dizimavam sua população, que, sem ter a quem recorrer, apelava a São Sebastião ou a piedosas procissões a espera do milagre divino.


A tardia reforma urbana de São Luís, que vai ocorrer mais de vinte anos depois da maioria das capitais, se deu tendo como referência uma miragem, no caso o contrato com a empresa norte-americana The Ulen Company, símbolo da renúncia cívica das elites políticas locais, incompetentes para resolver os problemas de insalubridade cada vez mais danosos, que, para tanto, tiveram que aceitar contratos leoninos, que escravizaram as finanças públicas locais em função das absurdas garantias que tiveram de oferecer à concessionária estrangeira. Um tormento que durará vários anos, indo praticamente de 1923 a 1946.


Como se vê são muito antigos os problemas relacionados à capacidade dos governantes da cidade em darem conta dos desafios colocados ao seu desenvolvimento. Além da falta de imaginação e criatividade, percebe-se, com muita clareza, a ausência de compromissos efetivos com o desenvolvimento ampliado da cidadania e o acesso democrático à coisa pública.


A esse respeito, pelo menos três fatos históricos podem ser lembrados, inclusive por já fazerem parte do anedotário local. O exemplo do Cais da Sagração é o primeiro. Pensado para promover melhorias urbanas, iniciado em 1841, além de ser a maior e mais destacada obra da cidade, passou 68 anos até ser plenamente concluído, isto em 1909. Rios de dinheiro, com toda a certeza, foram lançados à beira-mar. O Canal do Arapapaí, projetado inicialmente em 1742 para comunicar as águas da Baía de São Marcos com as do Rio do mesmo nome, nunca efetivamente foi finalizado, muito embora, no dizer de André Rebouças, “o escândalo chegou ao ponto de se desfazer à noite o trabalho executado durante o dia”. O grande João Lisboa, indignado, reverberava sobre o nefando Canal, destacando que se tratava da prova mais eloquente da “ignorância, incúria, corrupção, desleixo e concussão” dos governantes. O último episódio a servir de exemplo foi o da construção do Porto de São Luís: as discussões sobre a transferência do Porto do Cais para o Itaqui foram iniciadas em 1911 e só na década dos anos 1960 começam a se concretizar.


Em seu laborioso “Dicionário”, de 1870, César Marques escreveu um verbete sobre o calçamento das artérias de São Luís no qual remete o leitor ao Tormento de Tântalo, afirmando: “terminada uma rua, quase nunca são reparados os seus estragos e dentro de pouco tempo acha-se toda inutilizada.”


Tântalo foi um célebre personagem da mitologia grega. Admirado entre os deuses do Olimpo resolveu convidá-los a um banquete no qual a carne do próprio filho foi servida. Queria testá-los. Como eram oniscientes, descobriam e, escandalizados, rejeitaram o festim. Zeus, o deus dos deuses e dos homens, restabelece a vida do filho ministrando-lhe uma punição severa: a eterna insatisfação. Condenado a vagar em um vale rico em vegetação e água, não podia no entanto utilizá-las. Toda vez que se aproximava da água, ela escorria ou se tentava pegar um fruto, a vegetação movia-se para distante.


Por que o caminho de São Luís é tão difícil de encontrar? Por que até hoje prevalece o sentimento de incompletude diante de algo aparentemente muito próximo, mas que não se consegue achar? Será o destino da cidade o destino de Tântalo?


Encontrar o caminho de São Luís continua sendo um desafio presente. Como se tem dito deve-se começar desconstruindo os vários mitos que povoam a sua história. É uma cidade de carne e osso e tem uma história de vida marcada por grandes contrastes sociais, culturais e políticos. Sempre correu na alma de suas elites governantes e culturais muito mais sangue português do que sangue maranhense. Sua tradição cultural erudita tem como matriz o lusitano ultramarino.


Governar São Luís não é só decantar valores culturais mitificados é, sobretudo exercer a liderança ética, espiritual e política de uma nova identidade que reconheça e legitime sua diversidade étnico-racial, de gênero e cultural, identidades essas omitidas e negadas pela história dos vencedores.

sábado, 12 de maio de 2012

NEIVA MOREIRA: SEMEADOR DAS REBELDIAS

por Raimundo Palhano

Recolho o título desta pequena homenagem a Neiva Moreira, que, na madrugada do dia 10 de maio passado, voou como águia para a eternidade dos tempos, inspirado no comovente texto de Beatriz Bissio, sua ex-companheira de muitos anos, escrito provavelmente em 2010, ao saber do então estado extremamente precário em que se encontrava a saúde do grande maranhense.

Dos tantos qualitativos merecidamente pronunciados a seu respeito o da condição de rebelde fervoroso sobressai-se: sua alma insurgente, seu espírito indomável, o seu apego à bravura. Rebelde, acima de tudo, em relação ao poder trucidador dos opressores.

A sua ausência solar será sentida profundamente e, com certeza, jamais será preenchida à altura. Materializava o último sobrevivente de uma linhagem especial de jornalistas e políticos nacionais que pautaram a sua existência nos imperativos da luta sem tréguas em favor da ética, da justiça, da liberdade e da democracia. Mais do que isso: balizaram suas práticas sociais atuando como verdadeiros semeadores e apóstolos desses valores, hoje completamente pisoteados pela maioria dos que controlam o poder por esse mundo afora.

Como maranhense foi um dos melhores, não só pela cultura polida na militância e esmerada pela experiência existencial, como pela marca de uma escrita peculiar e autônoma, distante da tradição literária elitista e barroca, embasadores que foram de sua competência profissional.

No campo da atuação política, onde desaguaram os seus dotes e talentos, foi o líder na edificação de uma corrente de oposição democrática local, sem similar no passado e mesmo na história estadual, marcada pelo poder das oligarquias, controladoras da vida social, política e econômica da província, movimento este interrompido pelo golpe militar e ainda hoje por terminar.

Foi o mais internacionalista dos líderes políticos locais, sem nenhum que o ombreie desde então no seu papel de semeador da libertação dos povos e da edificação da democracia popular.

Condicionado pelo exílio, em pouco mais de quinze anos, construiu uma atuação jornalística e política internacional altamente respeitada, tanto pelas inovações técnicas, como, sobretudo, pelo combate sem tréguas ao imperialismo, ao neocolonialismo e à exclusão dos países do sul frente ao norte rico e dominador.

Em quase duas décadas manteve pulsante os Cadernos do Terceiro Mundo, uma publicação que deu voz aos países subdesenvolvidos e a suas lutas libertárias contra a opressão, criando e promovendo uma teia articuladora dessas demandas, até então operadas isoladamente, e uma consciência nova das injustiças praticadas no contexto da ordem econômica mundial, decisivas para mobilizar a juventude e as forças políticas de muitos países dominados pelo poder internacional.

O curioso em tudo isso é que Neiva, mesmo tendo atuado muito tempo fora, tanto em outros estados do Brasil como no exterior, jamais perdeu os seus vínculos telúricos. No mencionado texto Beatriz é taxativa: “... o Maranhão foi o eixo em torno do qual teceu a sua vida pública e sua militância política”. Foi, portanto provincial, jamais provinciano. Por tudo isso o seu nome figura não só na galeria dos grandes maranhenses de todos os tempos, como no museu vivo que guarda a memória dos que contribuíram efetivamente para a construção da identidade maranhense, nacional e terceiro mundista.

É o segundo grande quadro de referência histórica que se perde no Maranhão, a contar da morte de Jackson Lago. Enquanto este último construiu o seu legado de lutas partindo do particular para o geral, focando o torrão; Neiva vislumbrava o mundo todo sem perder o gosto pelo doce de buriti. Ambos, no entanto possuíam uma crença inabalável: a devoção ao Maranhão e ao seu povo.

Foram-se 94 anos de semeaduras, deitando sementes de rebeldia nesta terra maranhota, nesta terra Brasil. Uma vida longa e rica para servir de referência em um contexto marcado por desafios e perplexidades cotidianas.

A águia que agora chega ao seu destino faz emergirem com vigor dois dos seus principais atributos: a capacidade política e a militância comprometida. Como político a herança que deixa é preciosa pelas contribuições históricas ao desenvolvimento do Maranhão e do Brasil. Como militante aflora a disposição permanente pelo bom combate, aquele que nega o conformismo, a indiferença e a omissão.

O poeta preferido de Neiva, quando se encontrava exilado, era Gonçalves Dias. Segundo Beatriz, recitava a Canção do Exílio com tanta veemência e paixão que do poema o seu autor parecia ser. Temia, sem dúvida, a possibilidade de nunca mais ver a sua terra natal. Voltou e com ela envolveu-se e por ela viveu até o último suspiro.

Contemplando serenamente a ampulheta do tempo que Neiva deixa como legado e inspiração é fácil perceber a presença gonçalvina em tudo que fez e praticou. Os temores da Canção do Exílio felizmente não aconteceram, permitindo que a sua obra grandiosa florescesse.

Embora não tendo chegado a ver com os próprios olhos os sonhos todos que sonhou para o Maranhão, com toda certeza jamais deixou de acreditar que se pode sim mudar o mundo.

Provavelmente lia todas as noites, antes de dormir, antes de sonhar, a Canção do Tamoio, certamente com o pensamento voltado para o Timbira: “Não chores, meu filho; não chores, que a vida é luta renhida: viver é lutar. A vida é combate, que os fracos abate, que os fortes, os bravos, só pode exaltar". Boa viagem, Neiva Moreira. O sonho não acabou.

sábado, 14 de abril de 2012

DUAS INICIATIVAS EM FAVOR DA DEMOCRACIA



por Raimundo Palhano

No momento em que nos aproximamos da data do terceiro ano de deposição do Governador Jackson Lago, por meio de um “golpe judiciário”, ocorrido em 17 de abril de 2009, também denominado por Marco Antonio Villa de golpe contra a nacionalidade, nada melhor para reverenciar a memória e a história do ilustre homem público do que a recente criação do Instituto que leva o seu nome e, dentro da agremiação, a feliz iniciativa de inaugurar dois projetos auspiciosos: o primeiro, denominado “Diálogos Jackson Lago” e o segundo, intitulado “Um Fio de Prosa com...”.

Os dois projetos foram lançados quase que simultaneamente à criação do IJL; um no mesmo dia e o outro no dia seguinte. Ambos contando com a inteligência fulgurante do historiador Villa e as luzes do seu verbo crítico, penetrante e provocador.

O objetivo central dos referidos projetos é ampliar e dinamizar a esfera pública em nosso Estado há muito tempo em situação de letargia, contribuindo para a democratização da sociedade local. Hannah Arendt, ao afirmar que a esfera pública é “o local adequado para a excelência humana”, consegue transmitir, de forma contundente, não só o seu julgamento sobre a matéria, como também a própria síntese da importância atribuída ao tema pela filosofia política antiga e moderna.

A proposta do IJL é que os dois projetos contribuam efetivamente para a produção e disseminação de informações e conhecimentos que estimulem o debate sobre o desenvolvimento e a consolidação democrática no Maranhão, com elevado foco municipal.

Como subprodutos das iniciativas pretende estimular e promover a produção, publicação e divulgação em livros, revistas, jornais, teses, redes sociais dos conteúdos abordados nos eventos. Além disso, espera que os Diálogos e o Fio de Prosa contribuam para a construção de agendas públicas sobre os temas emergentes e contemporâneos enfocados, articulando-os aos movimentos sociais e à sociedade civil organizada. E, por último, que incentivem a formação, expressão e mobilização política da sociedade em geral por intermédio de cursos, palestras, seminários, encontros, congressos, fóruns, debates, círculos de diálogo e cultura.

Quando Arendt afirma, com efeito, que a esfera pública é o lugar da “excelência humana”, ela está reconhecendo ali o lugar da política, o lugar no qual o homem é capaz de fazer política, capacidade esta que, em seu juízo, torna o ser humano diferente e distinto dos outros animais, pois fazer política implica em agir, discutir, formular projetos, o que nenhuma outra espécie é ou foi capaz de empreender.

O primeiro Diálogo ocorreu no dia 4 de abril passado, por ocasião da posse da primeira diretoria e do corpo de coordenadores do IJL, no auditório da OAB, completamente lotado por representativo contingente do que se tem de melhor no campo democrático. O tema foi sobre a relevância da questão democracia versus oligarquia no atual contexto local e brasileiro. O expositor M.A. Villa trouxe uma excelente contribuição. A platéia atendeu plenamente às expectativas. No dia seguinte, na órbita do Fio de Prosa houve um aprofundamento das questões, a partir da participação de um grupo de interlocutores convidados. Outro grande momento. Sem dúvida, o resultado de todo esse exercício deixou patente o peso que terá em nosso meio o investimento em iniciativas como essas, pelo poder que têm de recriar a esfera pública, sobretudo agora quando se vive uma forte crise de legitimidade das lideranças políticas, de pensamentos e ideias inovadoras.

A esfera pública, segundo o entendimento da autora referida anteriormente, é o lugar da ação e da palavra, condição pela qual assume o papel de espaço privilegiado da liberdade. Ali qualquer ato de arbitrariedade representa a morte do político, seja pela cassação da palavra, seja pela obstrução da ação. A manifestação de qualquer um desses atos é um procedimento pré-político.

Com efeito, a excelência da esfera pública, em especial para autores como Hannah, não retira a relevância da esfera privada. A “publicização” do privado, a hipertrofia da esfera pública, fenômeno especialmente contemporâneo, não leva necessariamente ao avanço do político. Em suas reflexões, deixa antever que o avanço desproporcional de uma das esferas sobre a outra, tanto em um quanto em outro sentidos, acaba provocando o desaparecimento do político. A cidadania, conforme suas análises, não pode ter a sua existência assegurada em apenas umas das instâncias, mesmo que esta seja a esfera pública. No âmbito do privado muito menos ainda, pois, para Arendt, esta é a esfera que responde pela satisfação das necessidades básicas.

Fundamentalmente a esfera pública é o lugar no qual as ações dos homens “objetivam” a sua reprodução material e da sua existência. Ademais, é uma concepção segundo a qual o privado não se confunde coma noção patrimonial de propriedade privada, pois, sobretudo, liga-se ‘a ideias de “privados de algo”, que nada mais é que a privação da esfera pública.

Na verdade, a existência da esfera pública, além de seus atributos específicos, cria a consciência da necessidade da ação política, que é a condição para a ultrapassagem da própria situação de “privação”. Se, na esfera privada, o homem conquista a sua sobrevivência enquanto ser individual; na esfera pública ele se reúne aos outros homens em busca de algo comum, na expectativa de construir algo que o ultrapasse no tempo.

Ação e palavra, como signos de uma concepção de esfera pública, nada mais são que metamorfoses da vontade, do querer, e do juízo, fatores que garantam o movimento da sociedade em sua face política. A intensidade deste movimento depende da existência da liberdade, que é a garantia de diálogo com todas as palavras e a certeza da ação em todos os sentidos.

O que se tem notado ultimamente no contexto maranhense, e isso já dura um bom tempo, é a configuração de uma situação na qual a esfera pública praticamente desapareceu. A rigor, as redes de comunicação escrita, falada e televisiva se encontram sob o controle acionário de um pequeníssimo e privilegiado grupo político-empresarial, que atua numa linha editorial inteiramente comprometida com a manutenção do sistema de dominação oligárquico. No ambiente acadêmico discute-se muito mais, obviamente, no entanto é uma ilustração descomprometida com os problemas do cotidiano e seus desafios, além de, em geral, permanecer quase inteiramente confinada aos bem decorados muros que cercam esses templos sagrados.

Com toda a certeza o abominável golpe de abril que retirou injustamente o Governador Jackson Lago do Palácio dos Leões, antes que completasse o seu legítimo mandato, não teria se dado do jeito que se deu se tivéssemos no Maranhão um outro nível de sociabilidade, mais engajada e comprometida, cuja presença passaria inexoravelmente pela existência de uma esfera pública ampliada.

terça-feira, 3 de abril de 2012

INSTITUTO JACKSON LAGO: OUSAR SABER



por Raimundo Palhano

O dia 4 de abril do corrente ano reúne condições objetivas para se transformar em uma data significativa no atual contexto social do Maranhão. A razão é a inauguração do Instituto Jackson Lago, comprometido com duas causas importantíssimas e desafiadoras: preservar e dignificar a memória do seu patrono e contribuir para a superação do atraso político-cultural maranhense, responsável primeiro pelo extravio imposto à história local. Com certeza o IJL não será mais uma organização como outras do país voltadas para o culto ao personalismo ou muito menos um espaço para beatificações e santificações. Preserva-se mais a memória e revitaliza-se mais a história desconstruindo os mitos e suas falsidades do que erigindo estátuas e panteões.

Preservar a memória de Jackson Lago não combina com mitificações e apologias. Sua marca principal era a paixão e a crença na política como imperativo ético, de forma tão radical que às vezes parecia a alguns uma prática quase religiosa, eivada muitas vezes de inocência e pureza. Daí o seu despojamento material, o orgulho com que afirmava seu desprezo aos bens patrimoniais, a renúncia voluntária a toda forma de vaidade e egocentrismo e, principalmente, a humildade com que se apresentava publicamente, seja investido da condição de autoridade mais elevada; seja no desempenho do seu convívio singular com o comum das pessoas.

O compromisso com a superação do atraso político-cultural maranhense significa o emergir de uma nova cultura política que ultrapasse as práticas de poder predominantes nas últimas décadas, que ainda hoje controlam e dominam os poderes constituídos e as instituições maranhenses, cada vez mais distantes dos anseios da população inclusiva.

Uma rápida passagem pelos eixos da formação social maranhense evidencia o peso decisivo da decadência econômica nessa estrutura de poder local, responsável que foi pela fertilização de formas atrasadas impeditivas do desenvolvimento político estadual.

A visão de Jackson Lago sobre esse problema era lúcida e clara, podendo ser recolhida do Plano Plurianual - PPA 2008-2011, o primeiro do seu governo, submetido à Assembléia Legislativa no segundo semestre de 2007. No aludido documento de planejamento, em seu capítulo sobre a realidade maranhense, destaca-se que no início do século XX em diante, a cotonicultura perde de vez o seu ímpeto, entrando em regime de sobrevida e lenta extinção, interrompida apenas em curtos períodos conjunturais, como o entre-guerras. Processo de declínio que decorreu também da ação da concorrência, que desbancou os produtos locais. “O longo período de decadência só não foi maior por força de um parque fabril têxtil que se instalou no Estado, entre fins do século XIX e as primeiras décadas do século XX, em decorrência, dentre outros fatores, das facilidades para importar da Europa e Estados Unidos, por preços acessíveis, máquinas e tecnologias da primeira fase da revolução industrial”.

A partir de meados dos anos 50 do século passado, segundo o PPA referido, teve início um novo processo de acumulação capitalista no país, baseado na concentração de capitais no sudeste. As economias regionais do Brasil, como a maranhense, tiveram que se adaptar a essa nova organização produtiva. O Maranhão passou então a cumprir o papel de área complementar de acumulação do sudeste, fato indutor do processo de desarticulação da tradicional economia local, atingindo mortalmente o setor têxtil. “Não houve nenhum processo produtivo inovador ou tecnologicamente avançado. A rigor a economia passou a depender quase inteiramente das atividades agrícolas e extrativas, que não obedeceram, em seu processo de implantação, a nenhum critério de racionalidade e planejamento econômicos. Rapidamente o Maranhão se transformou em área de reserva do capitalismo em expansão, estimulada pelos incentivos fiscais, que atraíram para a região os capitais excedentes acumulados no centro dinâmico da economia”.

O paradoxo da economia maranhense, segundo o PPA do Governador Jackson Lago, “reside no fato dos investimentos infraestruturais não terem provocado taxas de crescimento do produto em níveis satisfatórios e, sobretudo desenvolvido as cadeias de produção. A explicação mais plausível para o fenômeno está na quase inexistente agregação de valores à produção pela economia local, tanto em relação aos setores dinâmicos, como minero-metalúrgico e agronegócio da soja, como em relação aos setores tradicionais ligados à agropecuária e à agricultura familiar”. O documento resume a situação da seguinte maneira, a partir da delimitação das duas dimensões da economia maranhense contemporânea: a dos grandes projetos, voltada para os mercados globalizados, claramente enclavistas, e as outras economias, em geral pequenas, muitas de cunho familiar, com baixíssima densidade tecnológica e de geração de excedentes. Diante desse quadro, o documento é enfático: “sem um projeto de desenvolvimento sustentável, construído e operado pelo governo, sociedade e setor econômico, tendo como alvo a superação da pobreza e o bem comum da população, não haverá a menor chance de modificação dos atuais parâmetros da economia local”.

O mestre dos economistas maranhenses, Ignacio Rangel, dizia aos seus filhos que a única herança que valeria deixar para os epígonos era a régua, o compasso e a bússola. Todos eles, indistintamente, os receberam como primeiro presente do amoroso pai. Jackson fez o mesmo em relação ao Instituto, pois deixou orientações, mapas e linhas mestras a serem palmilhadas.

Inspirar-se na memória de Jackson e, ao mesmo tempo, contribuir para tirar o Maranhão do extravio deixa patente que a principal estratégia de ação do IJL deverá ser a de virar o Maranhão pelo avesso. O desejo profundo do Governador era esse, sem dúvida. Na Mensagem em que submete ao Legislativo o já destacado PPA 2008-2011, alerta que o Maranhão continuava tutelado por idealizações, mitos e lendas sobre a sua realidade e os seus desafios. Nas palavras do Governador: “...decorrem desta maneira especial de olhar introspectivamente o Maranhão as dificuldades relacionadas a todo e qualquer esforço de interpretação sobre o presente, o passado e o futuro desta terra e de seu povo”, para, enfim, concluir: “...é preciso passar a limpo o que foi, o que é e o que será o Maranhão... Isto significa, antes de tudo, colocar os mitos de cabeça para baixo, revelar os avessos, confrontar a razão patrimonialista e, sobretudo, ajudar a produzir uma cosmovisão que ocupe o lugar das explicações hegemônicas. Significa também enfrentar os curadores de um espólio intelectual já ultrapassado, mas que ainda continua servindo como panacéia ideológica em favor do conservadorismo anacrônico e do elitismo arrogante”.

Acredito que uma das explicações para a perpetuação da já muito longa decadência política do Maranhão se deva ao aprisionamento da capacidade de ser do seu povo, fenômeno que transborda a todas as camadas sociais. Os fatos cotidianos da sociedade inclusiva parecem evidenciar que há uma renúncia cívica geral, a ponto de muitos não se sentirem como portadores da história. Não há outra razão mais forte para justificar a aceitação passiva das “certezas dogmáticas” das elites políticas locais sobre esta terra e o seu destino.

A escolha do título desta pequena contribuição reflete sobre este dilema. Remete a Kant e ao lema que usou para compor sua célebre resposta aos críticos do iluminismo, intitulada “O que é esclarecimento?”: sapere aude; ousar saber! Vejo aqui a régua, o compasso e a bússola deixados como herança para o Instituto pelo seu patrono. Fácil conseguir tudo isso? Óbvio que não. Está no centro de tudo a apropriação e manutenção de poderes os mais desejados e disputados. Além da maior e das mais desafiadoras das utopias em toda a história humana: a conquista da democracia propriamente dita. Kant acreditava mais no pensamento do que na teologia. Desenvolveu sua metafísica prática certo de que o pensamento excede infinitamente o conhecimento, as “certezas”. Seria certamente um exagero afirmar-se que o Maranhão ainda se encontra na era das trevas, mas é bastante plausível admitir-se que ainda não chegou à era das luzes em matéria de cultura política.

Ouse saber, ouse pensar e ouse agir Instituto Jackson Lago. Estimule o povo maranhense a reagir contra aqueles que pretendem mantê-lo como caricatura de imposições escravizadoras. Contribua para desbloquear as muitas cabeças que servem aos interesses dos que dominam tudo e todos. As lógicas econômicas estão mudando e precisa-se ter capacidade de interpelá-las em favor de uma nova sociabilidade baseada na democracia e na justiça. Há um novo arranjo institucional de poder em gestação, o qual se precisa assimilar e acompanhar ativamente. Novos movimentos sociais estão surgindo no lugar dos que se institucionalizaram e ficaram para trás. Novos conceitos de desenvolvimento tomam força e são repensados a partir do ponto de vista das populações tradicionais da região. É preciso captar as inovações e a criatividades desses novos sujeitos que surgem na Amazônia e no Nordeste do Brasil. Vida longa, Instituto Jackson Lago e boa sorte!