sábado, 14 de abril de 2012
DUAS INICIATIVAS EM FAVOR DA DEMOCRACIA
por Raimundo Palhano
No momento em que nos aproximamos da data do terceiro ano de deposição do Governador Jackson Lago, por meio de um “golpe judiciário”, ocorrido em 17 de abril de 2009, também denominado por Marco Antonio Villa de golpe contra a nacionalidade, nada melhor para reverenciar a memória e a história do ilustre homem público do que a recente criação do Instituto que leva o seu nome e, dentro da agremiação, a feliz iniciativa de inaugurar dois projetos auspiciosos: o primeiro, denominado “Diálogos Jackson Lago” e o segundo, intitulado “Um Fio de Prosa com...”.
Os dois projetos foram lançados quase que simultaneamente à criação do IJL; um no mesmo dia e o outro no dia seguinte. Ambos contando com a inteligência fulgurante do historiador Villa e as luzes do seu verbo crítico, penetrante e provocador.
O objetivo central dos referidos projetos é ampliar e dinamizar a esfera pública em nosso Estado há muito tempo em situação de letargia, contribuindo para a democratização da sociedade local. Hannah Arendt, ao afirmar que a esfera pública é “o local adequado para a excelência humana”, consegue transmitir, de forma contundente, não só o seu julgamento sobre a matéria, como também a própria síntese da importância atribuída ao tema pela filosofia política antiga e moderna.
A proposta do IJL é que os dois projetos contribuam efetivamente para a produção e disseminação de informações e conhecimentos que estimulem o debate sobre o desenvolvimento e a consolidação democrática no Maranhão, com elevado foco municipal.
Como subprodutos das iniciativas pretende estimular e promover a produção, publicação e divulgação em livros, revistas, jornais, teses, redes sociais dos conteúdos abordados nos eventos. Além disso, espera que os Diálogos e o Fio de Prosa contribuam para a construção de agendas públicas sobre os temas emergentes e contemporâneos enfocados, articulando-os aos movimentos sociais e à sociedade civil organizada. E, por último, que incentivem a formação, expressão e mobilização política da sociedade em geral por intermédio de cursos, palestras, seminários, encontros, congressos, fóruns, debates, círculos de diálogo e cultura.
Quando Arendt afirma, com efeito, que a esfera pública é o lugar da “excelência humana”, ela está reconhecendo ali o lugar da política, o lugar no qual o homem é capaz de fazer política, capacidade esta que, em seu juízo, torna o ser humano diferente e distinto dos outros animais, pois fazer política implica em agir, discutir, formular projetos, o que nenhuma outra espécie é ou foi capaz de empreender.
O primeiro Diálogo ocorreu no dia 4 de abril passado, por ocasião da posse da primeira diretoria e do corpo de coordenadores do IJL, no auditório da OAB, completamente lotado por representativo contingente do que se tem de melhor no campo democrático. O tema foi sobre a relevância da questão democracia versus oligarquia no atual contexto local e brasileiro. O expositor M.A. Villa trouxe uma excelente contribuição. A platéia atendeu plenamente às expectativas. No dia seguinte, na órbita do Fio de Prosa houve um aprofundamento das questões, a partir da participação de um grupo de interlocutores convidados. Outro grande momento. Sem dúvida, o resultado de todo esse exercício deixou patente o peso que terá em nosso meio o investimento em iniciativas como essas, pelo poder que têm de recriar a esfera pública, sobretudo agora quando se vive uma forte crise de legitimidade das lideranças políticas, de pensamentos e ideias inovadoras.
A esfera pública, segundo o entendimento da autora referida anteriormente, é o lugar da ação e da palavra, condição pela qual assume o papel de espaço privilegiado da liberdade. Ali qualquer ato de arbitrariedade representa a morte do político, seja pela cassação da palavra, seja pela obstrução da ação. A manifestação de qualquer um desses atos é um procedimento pré-político.
Com efeito, a excelência da esfera pública, em especial para autores como Hannah, não retira a relevância da esfera privada. A “publicização” do privado, a hipertrofia da esfera pública, fenômeno especialmente contemporâneo, não leva necessariamente ao avanço do político. Em suas reflexões, deixa antever que o avanço desproporcional de uma das esferas sobre a outra, tanto em um quanto em outro sentidos, acaba provocando o desaparecimento do político. A cidadania, conforme suas análises, não pode ter a sua existência assegurada em apenas umas das instâncias, mesmo que esta seja a esfera pública. No âmbito do privado muito menos ainda, pois, para Arendt, esta é a esfera que responde pela satisfação das necessidades básicas.
Fundamentalmente a esfera pública é o lugar no qual as ações dos homens “objetivam” a sua reprodução material e da sua existência. Ademais, é uma concepção segundo a qual o privado não se confunde coma noção patrimonial de propriedade privada, pois, sobretudo, liga-se ‘a ideias de “privados de algo”, que nada mais é que a privação da esfera pública.
Na verdade, a existência da esfera pública, além de seus atributos específicos, cria a consciência da necessidade da ação política, que é a condição para a ultrapassagem da própria situação de “privação”. Se, na esfera privada, o homem conquista a sua sobrevivência enquanto ser individual; na esfera pública ele se reúne aos outros homens em busca de algo comum, na expectativa de construir algo que o ultrapasse no tempo.
Ação e palavra, como signos de uma concepção de esfera pública, nada mais são que metamorfoses da vontade, do querer, e do juízo, fatores que garantam o movimento da sociedade em sua face política. A intensidade deste movimento depende da existência da liberdade, que é a garantia de diálogo com todas as palavras e a certeza da ação em todos os sentidos.
O que se tem notado ultimamente no contexto maranhense, e isso já dura um bom tempo, é a configuração de uma situação na qual a esfera pública praticamente desapareceu. A rigor, as redes de comunicação escrita, falada e televisiva se encontram sob o controle acionário de um pequeníssimo e privilegiado grupo político-empresarial, que atua numa linha editorial inteiramente comprometida com a manutenção do sistema de dominação oligárquico. No ambiente acadêmico discute-se muito mais, obviamente, no entanto é uma ilustração descomprometida com os problemas do cotidiano e seus desafios, além de, em geral, permanecer quase inteiramente confinada aos bem decorados muros que cercam esses templos sagrados.
Com toda a certeza o abominável golpe de abril que retirou injustamente o Governador Jackson Lago do Palácio dos Leões, antes que completasse o seu legítimo mandato, não teria se dado do jeito que se deu se tivéssemos no Maranhão um outro nível de sociabilidade, mais engajada e comprometida, cuja presença passaria inexoravelmente pela existência de uma esfera pública ampliada.
terça-feira, 3 de abril de 2012
INSTITUTO JACKSON LAGO: OUSAR SABER
por Raimundo Palhano
O dia 4 de abril do corrente ano reúne condições objetivas para se transformar em uma data significativa no atual contexto social do Maranhão. A razão é a inauguração do Instituto Jackson Lago, comprometido com duas causas importantíssimas e desafiadoras: preservar e dignificar a memória do seu patrono e contribuir para a superação do atraso político-cultural maranhense, responsável primeiro pelo extravio imposto à história local. Com certeza o IJL não será mais uma organização como outras do país voltadas para o culto ao personalismo ou muito menos um espaço para beatificações e santificações. Preserva-se mais a memória e revitaliza-se mais a história desconstruindo os mitos e suas falsidades do que erigindo estátuas e panteões.
Preservar a memória de Jackson Lago não combina com mitificações e apologias. Sua marca principal era a paixão e a crença na política como imperativo ético, de forma tão radical que às vezes parecia a alguns uma prática quase religiosa, eivada muitas vezes de inocência e pureza. Daí o seu despojamento material, o orgulho com que afirmava seu desprezo aos bens patrimoniais, a renúncia voluntária a toda forma de vaidade e egocentrismo e, principalmente, a humildade com que se apresentava publicamente, seja investido da condição de autoridade mais elevada; seja no desempenho do seu convívio singular com o comum das pessoas.
O compromisso com a superação do atraso político-cultural maranhense significa o emergir de uma nova cultura política que ultrapasse as práticas de poder predominantes nas últimas décadas, que ainda hoje controlam e dominam os poderes constituídos e as instituições maranhenses, cada vez mais distantes dos anseios da população inclusiva.
Uma rápida passagem pelos eixos da formação social maranhense evidencia o peso decisivo da decadência econômica nessa estrutura de poder local, responsável que foi pela fertilização de formas atrasadas impeditivas do desenvolvimento político estadual.
A visão de Jackson Lago sobre esse problema era lúcida e clara, podendo ser recolhida do Plano Plurianual - PPA 2008-2011, o primeiro do seu governo, submetido à Assembléia Legislativa no segundo semestre de 2007. No aludido documento de planejamento, em seu capítulo sobre a realidade maranhense, destaca-se que no início do século XX em diante, a cotonicultura perde de vez o seu ímpeto, entrando em regime de sobrevida e lenta extinção, interrompida apenas em curtos períodos conjunturais, como o entre-guerras. Processo de declínio que decorreu também da ação da concorrência, que desbancou os produtos locais. “O longo período de decadência só não foi maior por força de um parque fabril têxtil que se instalou no Estado, entre fins do século XIX e as primeiras décadas do século XX, em decorrência, dentre outros fatores, das facilidades para importar da Europa e Estados Unidos, por preços acessíveis, máquinas e tecnologias da primeira fase da revolução industrial”.
A partir de meados dos anos 50 do século passado, segundo o PPA referido, teve início um novo processo de acumulação capitalista no país, baseado na concentração de capitais no sudeste. As economias regionais do Brasil, como a maranhense, tiveram que se adaptar a essa nova organização produtiva. O Maranhão passou então a cumprir o papel de área complementar de acumulação do sudeste, fato indutor do processo de desarticulação da tradicional economia local, atingindo mortalmente o setor têxtil. “Não houve nenhum processo produtivo inovador ou tecnologicamente avançado. A rigor a economia passou a depender quase inteiramente das atividades agrícolas e extrativas, que não obedeceram, em seu processo de implantação, a nenhum critério de racionalidade e planejamento econômicos. Rapidamente o Maranhão se transformou em área de reserva do capitalismo em expansão, estimulada pelos incentivos fiscais, que atraíram para a região os capitais excedentes acumulados no centro dinâmico da economia”.
O paradoxo da economia maranhense, segundo o PPA do Governador Jackson Lago, “reside no fato dos investimentos infraestruturais não terem provocado taxas de crescimento do produto em níveis satisfatórios e, sobretudo desenvolvido as cadeias de produção. A explicação mais plausível para o fenômeno está na quase inexistente agregação de valores à produção pela economia local, tanto em relação aos setores dinâmicos, como minero-metalúrgico e agronegócio da soja, como em relação aos setores tradicionais ligados à agropecuária e à agricultura familiar”. O documento resume a situação da seguinte maneira, a partir da delimitação das duas dimensões da economia maranhense contemporânea: a dos grandes projetos, voltada para os mercados globalizados, claramente enclavistas, e as outras economias, em geral pequenas, muitas de cunho familiar, com baixíssima densidade tecnológica e de geração de excedentes. Diante desse quadro, o documento é enfático: “sem um projeto de desenvolvimento sustentável, construído e operado pelo governo, sociedade e setor econômico, tendo como alvo a superação da pobreza e o bem comum da população, não haverá a menor chance de modificação dos atuais parâmetros da economia local”.
O mestre dos economistas maranhenses, Ignacio Rangel, dizia aos seus filhos que a única herança que valeria deixar para os epígonos era a régua, o compasso e a bússola. Todos eles, indistintamente, os receberam como primeiro presente do amoroso pai. Jackson fez o mesmo em relação ao Instituto, pois deixou orientações, mapas e linhas mestras a serem palmilhadas.
Inspirar-se na memória de Jackson e, ao mesmo tempo, contribuir para tirar o Maranhão do extravio deixa patente que a principal estratégia de ação do IJL deverá ser a de virar o Maranhão pelo avesso. O desejo profundo do Governador era esse, sem dúvida. Na Mensagem em que submete ao Legislativo o já destacado PPA 2008-2011, alerta que o Maranhão continuava tutelado por idealizações, mitos e lendas sobre a sua realidade e os seus desafios. Nas palavras do Governador: “...decorrem desta maneira especial de olhar introspectivamente o Maranhão as dificuldades relacionadas a todo e qualquer esforço de interpretação sobre o presente, o passado e o futuro desta terra e de seu povo”, para, enfim, concluir: “...é preciso passar a limpo o que foi, o que é e o que será o Maranhão... Isto significa, antes de tudo, colocar os mitos de cabeça para baixo, revelar os avessos, confrontar a razão patrimonialista e, sobretudo, ajudar a produzir uma cosmovisão que ocupe o lugar das explicações hegemônicas. Significa também enfrentar os curadores de um espólio intelectual já ultrapassado, mas que ainda continua servindo como panacéia ideológica em favor do conservadorismo anacrônico e do elitismo arrogante”.
Acredito que uma das explicações para a perpetuação da já muito longa decadência política do Maranhão se deva ao aprisionamento da capacidade de ser do seu povo, fenômeno que transborda a todas as camadas sociais. Os fatos cotidianos da sociedade inclusiva parecem evidenciar que há uma renúncia cívica geral, a ponto de muitos não se sentirem como portadores da história. Não há outra razão mais forte para justificar a aceitação passiva das “certezas dogmáticas” das elites políticas locais sobre esta terra e o seu destino.
A escolha do título desta pequena contribuição reflete sobre este dilema. Remete a Kant e ao lema que usou para compor sua célebre resposta aos críticos do iluminismo, intitulada “O que é esclarecimento?”: sapere aude; ousar saber! Vejo aqui a régua, o compasso e a bússola deixados como herança para o Instituto pelo seu patrono. Fácil conseguir tudo isso? Óbvio que não. Está no centro de tudo a apropriação e manutenção de poderes os mais desejados e disputados. Além da maior e das mais desafiadoras das utopias em toda a história humana: a conquista da democracia propriamente dita. Kant acreditava mais no pensamento do que na teologia. Desenvolveu sua metafísica prática certo de que o pensamento excede infinitamente o conhecimento, as “certezas”. Seria certamente um exagero afirmar-se que o Maranhão ainda se encontra na era das trevas, mas é bastante plausível admitir-se que ainda não chegou à era das luzes em matéria de cultura política.
Ouse saber, ouse pensar e ouse agir Instituto Jackson Lago. Estimule o povo maranhense a reagir contra aqueles que pretendem mantê-lo como caricatura de imposições escravizadoras. Contribua para desbloquear as muitas cabeças que servem aos interesses dos que dominam tudo e todos. As lógicas econômicas estão mudando e precisa-se ter capacidade de interpelá-las em favor de uma nova sociabilidade baseada na democracia e na justiça. Há um novo arranjo institucional de poder em gestação, o qual se precisa assimilar e acompanhar ativamente. Novos movimentos sociais estão surgindo no lugar dos que se institucionalizaram e ficaram para trás. Novos conceitos de desenvolvimento tomam força e são repensados a partir do ponto de vista das populações tradicionais da região. É preciso captar as inovações e a criatividades desses novos sujeitos que surgem na Amazônia e no Nordeste do Brasil. Vida longa, Instituto Jackson Lago e boa sorte!
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