Nasci em um sábado, ao meio dia.
Meio perdido entre dedos humanos.
Em de 30 de agosto de 2000 completei 19.359 dias de vida.
Significou ter respirado 464.619 horas,
nada menos que 27.877.173 minutos,
ou seja, 2.765 semanas,
que equivaleram a 636 meses, feitos de dias e noites.
Incrível!
E agora, ao meio dia de sábado de 2007, onde renascerei?
Que outros pais ouvirão meu choro de espanto diante do mundo,
se os que me fecundaram partiram para viver a morte?
A quem recorrerei para que expliquem o que sou,
se não mais nascerei?
A quem devo perguntar sobre o meu passado,
se a minha memória ainda não se refez do susto?
Preciso saber o que perdi por onde andei.
Necessito conhecer o que achei por onde permaneci.
Se deste composto de cinqüenta e nove moléculas,
59 vezes encontradas entre achados e perdidos,
restou algum sinal do clarão da manhã.
sábado, 5 de maio de 2007
OS LIMITES DO IDH
É como se já tivesse havido o fim das oligarquias no Maranhão, o poder público deixado de ser “privado”, os municípios fossem autônomos, os grandes projetos rurais e urbanos substituídos por uma economia local sustentável e o povo tivesse acesso a uma educação de qualidade...
É como se já tivesse havido a reinvenção do Maranhão e o apodrecido torrão timbira estivesse em definitivo morto e sepultado, juntamente com suas mazelas sociais, seus mitos alienadores, suas injustiças e concentrações abomináveis de poderes e riquezas...
É essa a impressão que tenho toda vez que ouço o discurso sobre os mágicos poderes do Índice de Desenvolvimento Humano, o consagrado IDH, como sinal do desenvolvimento sustentável. Organizam suas idéias de modo tão solenemente intangíveis que os argumentos mais parecem celebrações litúrgicas que propostas a serem discutidas e aprovadas pela sociedade.
Venho de uma geração de sonhadores renitentes. Idealizamos o Maranhão como uma utopia viável, onde injustiças e desigualdades, riqueza e pobreza, governantes e governados seriam superados por formas novas de sociabilidade, pautadas na equidade e na inexistência de assimetrias sociais. Por essa razão éramos exigentes ao formular projetos de desenvolvimento para esta terra. Fazíamos sondagens profundas sobre a nossa história, a identidade cultural do nosso povo e buscávamos teorias e técnicas consistentes para referendar nossos sonhos.
Os “desenvolvimentistas” de hoje ritualizam idéias muito pontuais e de eficácia duvidosa, a ponto de banalizarem as soluções para o atraso e o subdesenvolvimento maranhense. É o que se pode depreender quando apresentam, sob formato religioso, os poderes messiânicos do IDH. Creio ser uma redundância continuar planejando o desenvolvimento sustentável do Maranhão focando prioritariamente no desempenho das variáveis que compõem o referido indicador, no caso a esperança de vida ao nascer, as matrículas escolares e a renda per-capita. Não é que não sejam variáveis importantes para medir o crescimento; o que não deve continuar é a falta de juízo crítico sobre os limites do referido índice, sobretudo o reconhecimento de evidenciará quantidades relativas e não situações absolutas de inclusão social. Como essas atividades poderão impactar, na intensidade desejável, o sistema econômico maranhense, em qualquer de suas dimensões, posto que ainda permanece sob o predomínio absoluto de meros aglomerados produtivos, praticamente não existindo cadeias e muito menos ainda arranjos produtivos visíveis?
Enquanto os planejadores orientarem suas estratégias apenas na melhoria do IDH, priorizando apenas finalidades com alta dosagem de abstração e irrealismo, dando pouca ênfase na produção de meios necessários à internalização dos processos produtivos, um novo ciclo de grandes projetos toma vulto, com as mesmas características do passado, só que agora com poder de fogo cinco vezes maior, indo do agro-negócio da soja ao pólo-siderúrgico previsto para a Capital. Parecem os estrategistas indiferentes ao fato de que a ordem mundial é cada vez mais dominada por princípios e práticas que desafiam a regulação e o controle das nações, das regiões e dos estados federados, no que condenam a antiqüíssima Palmátria, o Maranhão alegórico dos poetas, a continuar perseguindo o insólito objetivo de reinventar a roda.
Não há como planejar o desenvolvimento sustentável do Maranhão sem considerar o papel decisivo dos municípios nesse processo, sobretudo pelo fato da elevada municipalização das políticas públicas. Os resultados da pesquisa “Produto Interno Bruto dos Municípios 1999-2002”, divulgados não faz muito tempo pelo IBGE, revelam o quadro de insustentabilidade da grande maioria dessas comunas. Dos 100 municípios com mais baixos PIB per-capita, 83 estavam no Maranhão. Quase 60% de todo o PIB estadual é gerado por apenas 10 dos seus 217 municípios. Não há uma produção local que os sustente em sua esmagadora maioria: dependem quase plenamente das transferências constitucionais e das aposentadorias da previdência social. Só existem basicamente dois pólos que geram produto e renda: o da grande São Luís, centrado nos serviços, turismo, comércio, indústria e na infra-estrutura para o complexo portuário do Itaqui e o do Sul, baseado na agropecuária e no agro-negócio, em especial da soja. No lugar de focar em metas pontuais, por quê não investir o fundo público, mesmo reduzido pelos encargos do endividamento expressivo, em serviços de utilidade pública, obras públicas, agricultura familiar, agroecologia, agroindústria? Por quê não estimular a produção de novas tecnologias sociais que se voltem para o desenvolvimento sustentável dos municípios, tanto para as áreas urbanas, como para as áreas rurais?
Os técnicos que hoje planejam o desenvolvimento do Maranhão, sob o Governo Jackson Lago, sabem que apenas elevar o IDH não garante a sustentabilidade do desenvolvimento em estados como o Maranhão, marcados por deficiências estruturais em seu sistema produtivo. Precisa-se mais do que nunca de um pensamento novo e várias estratégias para equacionar as múltiplas e complexas questões estaduais. A chamada invasão capitalista é cada vez mais voraz no Maranhão e, se não for enfrentada em favor da superação da pobreza e do subdesenvolvimento, rapidamente transformará todos os recursos locais em mercadorias. O que se tem observado na história recente do Estado é a confirmação cotidiana da ignorância dos governos, em todos os níveis, sobre os perigos e ameaças a que estamos submetidos por falta dessa atitude ética em relação ao processo estadual de desenvolvimento.
Nada é sempre e plenamente linear na vida social e muito menos nos processos históricos. A história das sociedades não se constrói como um sistema integrado, interligado e muito menos coeso. O inaudito, os sonhos e as utopias fazem parte também desse movimento e, em alguns casos, chegam a ser até mesmo definidores de destinos. Sem esquecer que a história dos vencedores jamais representa a vitória do bem sobre o mal, mas, também, a vitória da infâmia, tão bem retratada nos contos de Borges.
Em Palmátria, o Maranhão alegórico dos poetas, os sinais indicam que o aristotelismo escolástico será superado, principalmente quando se evidencia a recusa em se adotar metas salvadoras. O mundo dos escolásticos, como se sabe, era uma enorme hierarquia, um imenso Portugal no caso colonial brasileiro. No escolasticismo a realidade é algo considerado inato, portanto não pode ser mudada, a não ser por vontade divina, o que obviamente não se aplica mais nos dias de hoje. Sobretudo pelo fato do Estado viver uma crise de hegemonia e permanecer em situação de erosão. Para viabilizar-se necessita gerar políticas públicas que respondam satisfatoriamente as demandas sociais. Para tanto torna-se urgente produzir formas justas e adequadas de repartição do fundo público, sem o que não se resolverão os conflitos inadiáveis e menos ainda se equacionarão os problemas que impedem o processo de consolidação dos meios necessários à efetivação do desenvolvimento sustentável.
sexta-feira, 4 de maio de 2007
IGNACIO RANGEL: UM DECIFRADOR DO BRASIL
- 1. O PERSONAGEM
Ignacio de Mourão Rangel nasceu a 20 de fevereiro de 1914, em Mirador, no Maranhão e faleceu em 04 de março de 1994, no Rio de Janeiro, combatendo a política econômica do governo Collor, para ele uma verdadeira apostasia.
De forma autodidata estudou, com rigor, história e economia. Cursou direito na antiga Faculdade de São Luís. No imediato pós-guerra radicou-se no Rio de Janeiro, onde permaneceu até o final de sua vida. Atuou inicialmente como jornalista, tendo sido secretário da United Press e como tradutor e, posteriormente, como jurista, historiador e, principalmente, como economista.
Foi um homem sólido de caráter, ideário, idoneidade e convicções políticas e filosóficas. Não apenas no discurso bem construído, mas na ação prática cotidiana. O espírito de luta que herdou dos familiares faz com que, aos 16 anos, participasse da “Revolução de 30” e aos 21 da tentativa de tomada do poder pela Aliança Nacional Libertadora-ANL. Foi um dos organizadores da luta dos trabalhadores rurais espoliados do Alto Sertão maranhense e piauiense contra o poder do latifúndio. Derrotado em 1935, passou os dez anos seguintes entre presídios no Rio de Janeiro, onde foi “reitor” de uma universidade popular formada por presidiários, e São Luís, onde viveu sob intensa vigilância e com direitos de ir e vir cerceados.
A partir dos anos 50 esteve presente, lúcida e ativamente, nas instituições e nas trincheiras de luta pelo desenvolvimento nacional. Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico-BNDE, hoje BNDS, Comissão Econômica para a América Latina-CEPAL, Instituto Superior de Estudos Brasileiros-ISEB, Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política-IBESP, Assessorias de Vargas e Goulart, Plano de Metas de Juscelino, Clube dos Economistas, Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro, Instituto de Economistas do Rio de Janeiro-IERJ e por último na Academia Maranhense de Letras, instituições estas onde atuou e realizou inúmeras trabalhos, conferências e ministrou cursos, além das várias exposições que fez a convite de universidades e instituições educacionais do país, tendo sido ainda colaborador permanente das principais revistas e publicações especializadas em economia, como a Revista de Economia Política, sendo um dos seus patronos, e dos maiores jornais do país, em especial a Folha de São Paulo.
Um verdadeiro doador de sangue e alma pela causa de uma pátria chamada Brasil, para que se desenvolvesse pelo bem do seu povo e para isso trabalhou e lutou tenazmente, sempre fiel aos seus princípios e valores, em favor de uma nova humanidade, não cedendo aos fascínios do poder e muito menos às conveniências oportunistas, no que teve de contrariar verdades professadas tanto pelo pensamento de direita, como pelos ideólogos da esquerda nacional, de onde era originário, o que lhe rendeu domicílios coactos e sofridos isolamentos nos círculos intelectuais tradicionais.
2. O INTELECTUAL
Rangel tem lugar garantido no pantheon onde figuram os grandes pensadores da formação social brasileira. Um seleto grupo do qual participam intelectuais como Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Celso Furtado. Seu livro “A Inflação Brasileira”, um clássico do pensamento econômico, está cotado pela CBL como um dos 50 livros brasileiros do século XX.
No texto introdutório de Márcio de Castro nas “Obras Reunidas” é enfatizado algo que singulariza a produção intelectual de Ignacio Rangel: foi um exemplo raro de teórico não-acadêmico. Todas as suas questões teóricas foram condicionadas pela busca de soluções aos problemas que afligiam o país, sobretudo os econômicos, sociais e políticos. Um criativo produtor de idéias, nascidas da combinação do prático com a busca de soluções adequadas às necessidades nacionais.
Não fez carreira acadêmica nem como docente, nem como pesquisador. Foi o maior dos economistas sendo formado em direito e um dos maiores intérpretes do Brasil sem ter atuado no meio universitário. Respeitava as questões que a academia pautava, muito embora preferisse dar seus próprios mergulhos, profundos, nos problemas do desenvolvimento brasileiro.
A independência intelectual, somada à coragem política, bem como o fato de não ter sido um acadêmico profissional, dificultarão a difusão de sua obra, sobretudo por não ter tido a convivência permanente de alunos e seguidores que se encarregassem de difundi-la sistematicamente, o que acabou impondo-lhe uma angustiante solidão intelectual, que o próprio Rangel denominava de “conspiração do silêncio”.
Embora tenha estudado com rigor as teorias de autores clássicos da literatura econômica, como Smith, Marx, Engels, Keynes, Luxemburg, Kalecki, Hilferding, Harrod, Robinson, Schumpeter, Kondratieff, Juglar, Kitchin, tendo inclisive se valido de muitos deles na estruturação de suas teses sobre a Dualidade, quando falava sobre as grandes influências intelectuais de sua vida, via de regra referia-se aos mestres do seu tempo de Maranhão, a começar pelo próprio pai, José Lucas Mourão Rangel, seguido-se Antonio Lopes da Cunha, com quem aprendeu direito, materialismo dialético e filosofia e a quem chamava respeitosamente de mestre; Arimatéia Cisne, com quem aprendeu latim, além de outros notáveis, como João Vasconcelos Martins e Caio Carvalho, diretor-presidente e chefe do escritório da firma Martins, Irmãos & Cia., para ele sua primeira e grande escola de aprendizagem da ciência econômica.
3. O DECIFRADOR
Apesar de ter construído um dos mais complexos e sofisticados sistemas explicativos do desenvolvimento da formação social brasileira, presente na Teoria da Dualidade Básica, o fio de Ariadne de sua obra, como costumava dizer, Rangel jamais confundiu a ciência econômica com os fundamentos do equilíbrio neoclássico, ou com as matemáticas ou com a econometria, como tem sido a lamentável tendência da atualidade, a causa maior do empobrecimento do pensamento econômico brasileiro, refletido na decadência de suas escolas e faculdades de economia.
Fábio Comparato, o grande jurista brasileiro, afirmou recentemente que a economia não pode ser vista como uma ciência exata. “A economia, como a política e o direito é uma sabedoria de decisões, ...é a sabedoria de tomar decisões”. Na economia, portanto, o essencial é saber quais devem ser os objetivos das decisões tomadas. Muito antes de Comparato, Rangel já havia chegado a essa constatação ao preferir ir fundo na resolução dos enigmas da formação social brasileira e não se contentar em apenas formular explicações meramente acadêmicas, incapazes de darem conta da resolução dos problemas desafiadores e recorrentes.
Passou a vida inteira procurando traduzir as especificidades da formação social brasileira e do seu desenvolvimento. Recusou de imediato a condição de transformar-se em mais um adaptador de teorias importadas, comum na intelectualidade dos anos 50 e 60 e até mesmo ainda hoje. As teses em voga, tanto da direita como da esquerda, a seu juízo, precisavam ser revistas criticamente. Por isso teve que assumir posições fortes no debate intelectual e político da época, a ponto de sua contribuição representar um novo olhar e uma nova interpretação sobre o Brasil e sua história.
Segundo Rangel, a dinâmica histórica brasileira não será compreendida se for pensada como os casos clássicos da história econômica dos países desenvolvidos. Os processos internos da formação brasileira, sejam econômicos, sociais e políticos, dependem das relações que se estabelecem com os centros dinâmicos da economia internacional. Foi a partir dessas constatações que criou leis sociológicas e econômicas para a interpretação do Brasil, sintetizadas em cinco grandes temáticas: a dualidade básica, a dinâmica capitalista, a inflação brasileira, a questão agrária e o papel do estado. Leis e princípios estes que tinham na Tese da Dualidade o ponto de referência central, o princípio organizador de suas idéias, considerada, sem nenhum exagero, um modo de produção sofisticado e complexo. O desenvolvimento capitalista criou uma enorme periferia, onde o Brasil se encontra ainda. Para decifrar o país, seus problemas e crises, não basta examinar o desenvolvimento econômico como se observa o comportamento dos modos de produção clássicos. É fundamental antes de tudo que se decifre a dinâmica e as especificidades da periferia e de suas relações com os países centrais do capitalismo.
Do início dos anos 50 até meados dos anos 90 do século anterior, quando vem a falecer, Ignacio Rangel foi quem melhor explicou os fundamentos da formação social e do desenvolvimento econômico do Brasil. A despeito da conspiração do silêncio e dos impactos produzidos pelo processo de globalização econômica e financeira, suas teorias continuam plenamente válidas e assim permanecerão por muito tempo, pois não se trata de uma contribuição datada e localizada e sim de uma obra que agrega valores imensuráveis ao pensamento humano.
4. O SENTIDO DAS OBRAS REUNIDAS
As “Obras Reunidas” estão divididas em dois volumes. O Volume 1 reune a tese que o autor defendeu na CEPAL, livros e monografias, ao todo oito títulos essenciais de sua produção intelectual. O Volume 2 compreende coletâneas de artigos elaborados entre 1955 e 1987, além de artigos avulsos, que vão de 1962 a 1992, portanto até os dois anos que antecederam a sua morte. Apesar do hercúleo esforço de César Benjamin, Márcio de Castro e Ludmila Rangel Ribeiro em reunir a obra completa de Rangel, com certeza uma nova garimpagem ainda encontrará textos e contribuições do autor espalhadas por esse imenso país, sob guarda de seus amigos e admiradores.
Na verdade, o mérito maior dos organizadores destas obras reside no fato de terem recolhido e juntado tesouros que se encontravam dispersos e que faziam uma falta enorme ao patrimônio cultural da nação, em especial à sua ciência econômica.
Trata-se de um tesouro que precisa ser descoberto pelas escolas de economia, sociologia, política, geografia e história deste país. Sobretudo pelos seus estudantes, para quem Rangel tinha uma verdadeira predileção, pois acreditava que seriam eles os fecundadores das sementes de um novo Brasil.
O ciclo eterno da concentração de riquezas e produção de desigualdades, destacado por Cristovam Buarque a partir da carta de Caminha, que escreveu que “nesta terra em se plantando tudo dá e se esqueceu de dizer que dá tudo, mas para poucos”, precisa, mais do que nunca, ser rompido, sem o que continuaremos adiando a solução definitiva das crises econômicas e políticas. Temos plena convicção de que as “Obras Reunidas” de Rangel iluminarão o enfrentamento desses problemas e contribuirão para a eleição de novas políticas econômicas que promovam o desenvolvimento nacional sustentável, baseado na geração de empregos, na ética e na justiça social.
Nós, os pioneiros dos anos 80 no Maranhão, sonhamos e lutamos muito pela reunião e publicação do legado intelectual de Ignacio Rangel. É impossível traduzir a alegria que sentimos ao ver esse objetivo alcançado agora.
5. O ÍDOLO
Falar sobre Ignácio Rangel para nós é um transbordamento. É como se fosse uma declaração de amor: do filho que se orgulha do pai que lhe enche os olhos; do discípulo que se entrega de corpo e alma ao deleite dos ensinamentos do mestre.
Convivemos próximos a Rangel por pouco mais de dez anos, justamente os últimos de sua vida magistral. Nunca sentimos nele a menor pretensão de ter discípulos. Tentávamos de todos os modos que ele nos aceitasse como tal, sem o menor sucesso. Era, ao contrário, um pregoeiro destemido e sério, um anunciador corajoso, um decifrador de enigmas, que teve o Brasil como maior desafio. Partia sempre da idéia de que os seus interlocutores podiam acompanhar o seu raciocínio e suas explicações a respeito de como superar os problemas do país. E aí ele nos levava, em expedições fantásticas, à convicção de que o mundo tinha saída, a pátria tinha futuro promissor e que a humanidade viria a ser plenamente evoluída e feliz. A maior de todas as suas utopias: a certeza de que todos os povos da Terra caminhariam para uma comunidade única- para “Um Mundo Só”.
Rangel não morreu. Está vivo e pulsa nas páginas destas “Obras” que estão sendo lançadas. Está mais belo do que nunca porque está entre nós por mãos femeninas, como as de Ludmila e Ana Rangel, as de Dilma e de muitas outras que aqui se encontram. Não será surpresa para nós, se, ao chegarmos em nossos lares, o Velho, de beijos e abraços com Aliete, José Lucas e Alberto, observados por Solon Sylvio, Paulo de Jesus, Evandro Lucas, Celso Augusto, José Aldo e Dirceu Carmelo nos mandar, como presentes por esta festa, uma bússola, um compasso, um relógio e uma reguinha de calcular, os mesmos que dera de presente para os filhos José Lucas e Ludmila quando fazia o curso da CEPAL no Chile. Será, sem nenhuma dúvida, mais um convite desse bravo “sobrevivente da dignidade, nestes tempos de canalhice organizada”, como diria Rossini Corrêa, para não desistirmos de decifrar e reinventar o Brasil.
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