sexta-feira, 4 de maio de 2007

IGNACIO RANGEL: UM DECIFRADOR DO BRASIL

  • 1. O PERSONAGEM
    Ignacio de Mourão Rangel nasceu a 20 de fevereiro de 1914, em Mirador, no Maranhão e faleceu em 04 de março de 1994, no Rio de Janeiro, combatendo a política econômica do governo Collor, para ele uma verdadeira apostasia.
    De forma autodidata estudou, com rigor, história e economia. Cursou direito na antiga Faculdade de São Luís. No imediato pós-guerra radicou-se no Rio de Janeiro, onde permaneceu até o final de sua vida. Atuou inicialmente como jornalista, tendo sido secretário da United Press e como tradutor e, posteriormente, como jurista, historiador e, principalmente, como economista.
    Foi um homem sólido de caráter, ideário, idoneidade e convicções políticas e filosóficas. Não apenas no discurso bem construído, mas na ação prática cotidiana. O espírito de luta que herdou dos familiares faz com que, aos 16 anos, participasse da “Revolução de 30” e aos 21 da tentativa de tomada do poder pela Aliança Nacional Libertadora-ANL. Foi um dos organizadores da luta dos trabalhadores rurais espoliados do Alto Sertão maranhense e piauiense contra o poder do latifúndio. Derrotado em 1935, passou os dez anos seguintes entre presídios no Rio de Janeiro, onde foi “reitor” de uma universidade popular formada por presidiários, e São Luís, onde viveu sob intensa vigilância e com direitos de ir e vir cerceados.
    A partir dos anos 50 esteve presente, lúcida e ativamente, nas instituições e nas trincheiras de luta pelo desenvolvimento nacional. Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico-BNDE, hoje BNDS, Comissão Econômica para a América Latina-CEPAL, Instituto Superior de Estudos Brasileiros-ISEB, Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política-IBESP, Assessorias de Vargas e Goulart, Plano de Metas de Juscelino, Clube dos Economistas, Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro, Instituto de Economistas do Rio de Janeiro-IERJ e por último na Academia Maranhense de Letras, instituições estas onde atuou e realizou inúmeras trabalhos, conferências e ministrou cursos, além das várias exposições que fez a convite de universidades e instituições educacionais do país, tendo sido ainda colaborador permanente das principais revistas e publicações especializadas em economia, como a Revista de Economia Política, sendo um dos seus patronos, e dos maiores jornais do país, em especial a Folha de São Paulo.
    Um verdadeiro doador de sangue e alma pela causa de uma pátria chamada Brasil, para que se desenvolvesse pelo bem do seu povo e para isso trabalhou e lutou tenazmente, sempre fiel aos seus princípios e valores, em favor de uma nova humanidade, não cedendo aos fascínios do poder e muito menos às conveniências oportunistas, no que teve de contrariar verdades professadas tanto pelo pensamento de direita, como pelos ideólogos da esquerda nacional, de onde era originário, o que lhe rendeu domicílios coactos e sofridos isolamentos nos círculos intelectuais tradicionais.

    2. O INTELECTUAL
    Rangel tem lugar garantido no pantheon onde figuram os grandes pensadores da formação social brasileira. Um seleto grupo do qual participam intelectuais como Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Celso Furtado. Seu livro “A Inflação Brasileira”, um clássico do pensamento econômico, está cotado pela CBL como um dos 50 livros brasileiros do século XX.
    No texto introdutório de Márcio de Castro nas “Obras Reunidas” é enfatizado algo que singulariza a produção intelectual de Ignacio Rangel: foi um exemplo raro de teórico não-acadêmico. Todas as suas questões teóricas foram condicionadas pela busca de soluções aos problemas que afligiam o país, sobretudo os econômicos, sociais e políticos. Um criativo produtor de idéias, nascidas da combinação do prático com a busca de soluções adequadas às necessidades nacionais.
    Não fez carreira acadêmica nem como docente, nem como pesquisador. Foi o maior dos economistas sendo formado em direito e um dos maiores intérpretes do Brasil sem ter atuado no meio universitário. Respeitava as questões que a academia pautava, muito embora preferisse dar seus próprios mergulhos, profundos, nos problemas do desenvolvimento brasileiro.
    A independência intelectual, somada à coragem política, bem como o fato de não ter sido um acadêmico profissional, dificultarão a difusão de sua obra, sobretudo por não ter tido a convivência permanente de alunos e seguidores que se encarregassem de difundi-la sistematicamente, o que acabou impondo-lhe uma angustiante solidão intelectual, que o próprio Rangel denominava de “conspiração do silêncio”.
    Embora tenha estudado com rigor as teorias de autores clássicos da literatura econômica, como Smith, Marx, Engels, Keynes, Luxemburg, Kalecki, Hilferding, Harrod, Robinson, Schumpeter, Kondratieff, Juglar, Kitchin, tendo inclisive se valido de muitos deles na estruturação de suas teses sobre a Dualidade, quando falava sobre as grandes influências intelectuais de sua vida, via de regra referia-se aos mestres do seu tempo de Maranhão, a começar pelo próprio pai, José Lucas Mourão Rangel, seguido-se Antonio Lopes da Cunha, com quem aprendeu direito, materialismo dialético e filosofia e a quem chamava respeitosamente de mestre; Arimatéia Cisne, com quem aprendeu latim, além de outros notáveis, como João Vasconcelos Martins e Caio Carvalho, diretor-presidente e chefe do escritório da firma Martins, Irmãos & Cia., para ele sua primeira e grande escola de aprendizagem da ciência econômica.

    3. O DECIFRADOR
    Apesar de ter construído um dos mais complexos e sofisticados sistemas explicativos do desenvolvimento da formação social brasileira, presente na Teoria da Dualidade Básica, o fio de Ariadne de sua obra, como costumava dizer, Rangel jamais confundiu a ciência econômica com os fundamentos do equilíbrio neoclássico, ou com as matemáticas ou com a econometria, como tem sido a lamentável tendência da atualidade, a causa maior do empobrecimento do pensamento econômico brasileiro, refletido na decadência de suas escolas e faculdades de economia.
    Fábio Comparato, o grande jurista brasileiro, afirmou recentemente que a economia não pode ser vista como uma ciência exata. “A economia, como a política e o direito é uma sabedoria de decisões, ...é a sabedoria de tomar decisões”. Na economia, portanto, o essencial é saber quais devem ser os objetivos das decisões tomadas. Muito antes de Comparato, Rangel já havia chegado a essa constatação ao preferir ir fundo na resolução dos enigmas da formação social brasileira e não se contentar em apenas formular explicações meramente acadêmicas, incapazes de darem conta da resolução dos problemas desafiadores e recorrentes.
    Passou a vida inteira procurando traduzir as especificidades da formação social brasileira e do seu desenvolvimento. Recusou de imediato a condição de transformar-se em mais um adaptador de teorias importadas, comum na intelectualidade dos anos 50 e 60 e até mesmo ainda hoje. As teses em voga, tanto da direita como da esquerda, a seu juízo, precisavam ser revistas criticamente. Por isso teve que assumir posições fortes no debate intelectual e político da época, a ponto de sua contribuição representar um novo olhar e uma nova interpretação sobre o Brasil e sua história.
    Segundo Rangel, a dinâmica histórica brasileira não será compreendida se for pensada como os casos clássicos da história econômica dos países desenvolvidos. Os processos internos da formação brasileira, sejam econômicos, sociais e políticos, dependem das relações que se estabelecem com os centros dinâmicos da economia internacional. Foi a partir dessas constatações que criou leis sociológicas e econômicas para a interpretação do Brasil, sintetizadas em cinco grandes temáticas: a dualidade básica, a dinâmica capitalista, a inflação brasileira, a questão agrária e o papel do estado. Leis e princípios estes que tinham na Tese da Dualidade o ponto de referência central, o princípio organizador de suas idéias, considerada, sem nenhum exagero, um modo de produção sofisticado e complexo. O desenvolvimento capitalista criou uma enorme periferia, onde o Brasil se encontra ainda. Para decifrar o país, seus problemas e crises, não basta examinar o desenvolvimento econômico como se observa o comportamento dos modos de produção clássicos. É fundamental antes de tudo que se decifre a dinâmica e as especificidades da periferia e de suas relações com os países centrais do capitalismo.
    Do início dos anos 50 até meados dos anos 90 do século anterior, quando vem a falecer, Ignacio Rangel foi quem melhor explicou os fundamentos da formação social e do desenvolvimento econômico do Brasil. A despeito da conspiração do silêncio e dos impactos produzidos pelo processo de globalização econômica e financeira, suas teorias continuam plenamente válidas e assim permanecerão por muito tempo, pois não se trata de uma contribuição datada e localizada e sim de uma obra que agrega valores imensuráveis ao pensamento humano.

    4. O SENTIDO DAS OBRAS REUNIDAS
    As “Obras Reunidas” estão divididas em dois volumes. O Volume 1 reune a tese que o autor defendeu na CEPAL, livros e monografias, ao todo oito títulos essenciais de sua produção intelectual. O Volume 2 compreende coletâneas de artigos elaborados entre 1955 e 1987, além de artigos avulsos, que vão de 1962 a 1992, portanto até os dois anos que antecederam a sua morte. Apesar do hercúleo esforço de César Benjamin, Márcio de Castro e Ludmila Rangel Ribeiro em reunir a obra completa de Rangel, com certeza uma nova garimpagem ainda encontrará textos e contribuições do autor espalhadas por esse imenso país, sob guarda de seus amigos e admiradores.
    Na verdade, o mérito maior dos organizadores destas obras reside no fato de terem recolhido e juntado tesouros que se encontravam dispersos e que faziam uma falta enorme ao patrimônio cultural da nação, em especial à sua ciência econômica.
    Trata-se de um tesouro que precisa ser descoberto pelas escolas de economia, sociologia, política, geografia e história deste país. Sobretudo pelos seus estudantes, para quem Rangel tinha uma verdadeira predileção, pois acreditava que seriam eles os fecundadores das sementes de um novo Brasil.
    O ciclo eterno da concentração de riquezas e produção de desigualdades, destacado por Cristovam Buarque a partir da carta de Caminha, que escreveu que “nesta terra em se plantando tudo dá e se esqueceu de dizer que dá tudo, mas para poucos”, precisa, mais do que nunca, ser rompido, sem o que continuaremos adiando a solução definitiva das crises econômicas e políticas. Temos plena convicção de que as “Obras Reunidas” de Rangel iluminarão o enfrentamento desses problemas e contribuirão para a eleição de novas políticas econômicas que promovam o desenvolvimento nacional sustentável, baseado na geração de empregos, na ética e na justiça social.
    Nós, os pioneiros dos anos 80 no Maranhão, sonhamos e lutamos muito pela reunião e publicação do legado intelectual de Ignacio Rangel. É impossível traduzir a alegria que sentimos ao ver esse objetivo alcançado agora.

    5. O ÍDOLO
    Falar sobre Ignácio Rangel para nós é um transbordamento. É como se fosse uma declaração de amor: do filho que se orgulha do pai que lhe enche os olhos; do discípulo que se entrega de corpo e alma ao deleite dos ensinamentos do mestre.
    Convivemos próximos a Rangel por pouco mais de dez anos, justamente os últimos de sua vida magistral. Nunca sentimos nele a menor pretensão de ter discípulos. Tentávamos de todos os modos que ele nos aceitasse como tal, sem o menor sucesso. Era, ao contrário, um pregoeiro destemido e sério, um anunciador corajoso, um decifrador de enigmas, que teve o Brasil como maior desafio. Partia sempre da idéia de que os seus interlocutores podiam acompanhar o seu raciocínio e suas explicações a respeito de como superar os problemas do país. E aí ele nos levava, em expedições fantásticas, à convicção de que o mundo tinha saída, a pátria tinha futuro promissor e que a humanidade viria a ser plenamente evoluída e feliz. A maior de todas as suas utopias: a certeza de que todos os povos da Terra caminhariam para uma comunidade única- para “Um Mundo Só”.
    Rangel não morreu. Está vivo e pulsa nas páginas destas “Obras” que estão sendo lançadas. Está mais belo do que nunca porque está entre nós por mãos femeninas, como as de Ludmila e Ana Rangel, as de Dilma e de muitas outras que aqui se encontram. Não será surpresa para nós, se, ao chegarmos em nossos lares, o Velho, de beijos e abraços com Aliete, José Lucas e Alberto, observados por Solon Sylvio, Paulo de Jesus, Evandro Lucas, Celso Augusto, José Aldo e Dirceu Carmelo nos mandar, como presentes por esta festa, uma bússola, um compasso, um relógio e uma reguinha de calcular, os mesmos que dera de presente para os filhos José Lucas e Ludmila quando fazia o curso da CEPAL no Chile. Será, sem nenhuma dúvida, mais um convite desse bravo “sobrevivente da dignidade, nestes tempos de canalhice organizada”, como diria Rossini Corrêa, para não desistirmos de decifrar e reinventar o Brasil.



2 comentários:

Anônimo disse...

Caro Raimundo,

Muito emocionante e verdadeira sua síntese sobre a vida e a obra do mais completo pensador brasileiro do século passado.

Como marxista e rangeliano não poderia passar sem te fazer esse elogio. Abraço do Elias Jabbour (eliasjabbour@terra.com.br)

Anônimo disse...

Foi um enorme prazer ver aqui estampado a história do homem que foi escolhido para ser meu padrinho de batismo. Permita-me acrescentar mais uma paixão, a minha por ele. Quando chegava à nossa casa, eu por várias vezes me escondia tamanha a emoção que sentia ao ve-lo; isto acontecia sempre. Na sua casa em Paquetá, deitei a cabeça no colo dele e aproveitei o conhecimento em astronomia, quando desenhou, somente para aos meus olhos, as constelações que a noite de Paquetá nos proporcionou, que privilégio. Ah esse foi um dos maiores presentes que ganhei, aliás presentes com ele para mim sempre foram educativos e culturais. Lembro-me apenas de um vestido vindo de Londres, todos os outros foram didáticos. Tinha também o Atlas russo que ele tinha em casa, nas Laranjeiras do meu Rio, ele mostrava, fascinado,(contaminando minha mente e alma com o mesmo fascinio que carrego até hoje) as maravilhas tecnólogicas russas que haviam mapeado e fotogrado uma pequeníssima cidade no interior da terra natal, o Maranhão de onde também veio minha mãe, Ayda Lamar, afilhada dos pais dele que sempre se referia a ele como Ignacinho.
A última vez que nos vimos foi quando minha mãe morreu, minha memória fotografou o olhar de perplexidade dele diante do meu e mantém isto na retina da minha alma até hoje. Ele se foi também e, ironicamente, tomei conhecimento através da mídia. Neste Rio tão pequeno estávamos tão afastados. De novo fiquei aterrorizada com a morte de mais um amor e, perplexa com o tempo dilapidador e voraz. Herdei o caráter e a influência cultural dos meus pais que, com certeza não me deram este padrinho à toa. A ele todas as minhas homenagens e meu eterno amor. Thalia Lamar Speciale