por Raimundo Palhano
O Maranhão é único visto como história. Por maiores que sejam as semelhanças e convergências com outros estados vizinhos, ou com mundos lá fora, há uma seiva especial gerada pelos filhos da terra. É o conteúdo do invólucro que define o seu modo de não ser, a sua esperança de morte e o seu potencial de transcendência.
Não há santo, gênio ou governo no mundo que sobreviva sem revelar e respeitar esse tesouro. Mesmo sabendo disso, em última análise, é para isso que os governos deveriam se aventurar. É para isso que santos e gênios existem.
O etos maranhense decorre de duas matrizes geográficas: uma que se origina no interior e outra que brota das ruas e das casas citadinas. Em uma perspectiva de longo prazo, os dois distintivos se separaram, por descuido ou omissão, ficando nos confins a sua parte mais esquecida: o Maranhão do interior.
Com efeito, a história do Maranhão possui características e peculiaridades que levaram à configuração desse quadro.
O povoamento à época da ocupação europeia apresentava-se fraco, em torno do golfo maranhense e da ilha que abrigava a Capital, tendente à redução. O comércio com Lisboa era pequeno, sobretudo pela falta de braços. Não podiam importar africanos e a escravização dos indígenas gerava conflitos com o projeto econômico e catequético dos jesuítas. A tendência declinante nas primeiras décadas do século XVIII eram evidentes. Boa parte dos beneficiários das doações vivia na metrópole portuguesa, sem a menor preocupação com o destino de suas capitanias. Os habitantes do território mantinham-se afastados dos povoados, embrenhados em suas roças e propriedades.
Trazendo o passado para hoje, mesmo decorridos tantos anos, não há como negar o atavismo presente no diálogo contemporâneo com o interior.
Outro fato histórico também influi no fenômeno. O longo período de isolamento do Maranhão em relação ao restante do Brasil, por exemplo, produziu várias consequências para a sua formação social, política e cultural, destacando-se o tardio desenvolvimento de sua economia colonial e a forte identificação com Portugal, a ponto de só aderir à Independência mediante intervenção armada, isto em 1823.
Mesmo a introdução da Companhia Geral de Comércio do Maranhão e Grão-Pará - CGCMGP, iniciativa do Marquês de Pombal, no reinado de D. José I, a partir da segunda metade do século XVIII, período em que a economia colonial maranhense assumiu relevância, produzindo algodão, arroz e mais tarde, já no século XIX, cana-de-açúcar, produtos de larga valorização à época, não conseguiu desenvolver o interior, que seguirá sendo área apenas para o emprego de fatores de produção econômica e, mais recentemente, reserva de valor para grandes empresas, elites econômicas e políticas.
Não esquecer que a “era do ouro” da economia maranhense, representada pela CGCMGP visava transformar o Maranhão, embora tardiamente, em uma colônia tropical clássica e, para isso, possuía dois monopólios decisivos: o do transporte e o do comércio externo. Indubitavelmente, lançou as bases do notável surto de desenvolvimento das quase cinco décadas seguintes, indo até às primeiras do século XIX, reforçando os fluxos e drenos que levavam para a Capital os benefícios materiais do aumento da riqueza produzida.
Tais circunstâncias influenciaram na configuração de uma mentalidade, presente nos beneficiários locais, representados por algumas centenas de senhores de terras e comerciantes, que se identificava com uma visão centralizadora e concentradora dos frutos do progresso.
O projeto cultural dessas elites baseava-se no transplante da civilização europeia. Símbolos disto: sobradões de paredes duplas, fachadas de azulejo, criadagem numerosa, filhos doutorando-se em Coimbra e Lisboa, assimilação dos gostos e modas europeias, indo do mobiliário, alfaias, baixelas, trajes, comidas, bebidas e lazeres.
A grande lavoura e o trabalho escravo, sobretudo entre a segunda metade do século VIII e as primeiras décadas do século XIX, fizeram do Maranhão uma das áreas mais ricas do Brasil, tornando São Luís, com cerca de 25.000 habitantes em 1822, a quarta cidade brasileira, atrás apenas do Rio de Janeiro, Salvador e Recife. Chegou a ter entre 100 e 150 navios por ano no porto e exportava ao redor de 1 milhão de libras, quase um terço das exportações do Brasil. No período o Maranhão era o segundo maior produtor de algodão, perdendo apenas para Pernambuco.
Formou-se então uma elite próspera no seio da qual saíram os poetas, os juristas, os políticos, os jornalistas e os eruditos, responsáveis pela distinção cultural da Província, que se sedimentará mais adiante, levando à mística construída pelos pósteros da Capital Atenas, principalmente pela sua condição de sucursal das luzes europeias, revigorando o dar as costas e o desprezo pelo interior e sua cultura, tratadas desde sempre como segunda categoria.
Impossível, portanto, não reconhecer que os determinantes que informam o etos maranhense estão associados a esses grandes momentos da sua formação social. Voltar-se mais para Lisboa do que para dentro de si, ou mesmo para o Brasil, produziu um contexto social, político e cultural que engendrou a dissolução voluntária dos vínculos originais e posteriores, responsável pela dualidade da “civilização” maranhense, colocando o interior do Maranhão no extravio de forma inexorável.
A resultante desse movimento histórico e dinâmica social produziu no imaginário e nas práticas políticas dos governantes e das elites dirigentes e seus seguidores a fixação na ideia de que o passado, o presente e o futuro do Maranhão começam sempre a partir de sua metrópole. Ao interior fica reservado o pão e o circo, itinerâncias à base de missangas, para trocas de presentes sem valor e apertos de mãos geladas, que mal servem para um “toma lá, dá cá”, no fundo, mais um golpe mortal no que restou de dignidade nas relações políticas com o interior.
Impossível mudar a realidade maranhense sem uma engenharia política que promova o reencontro das duas civilizações desgarradas. Pouco se conhece sobre o Maranhão interior; o composto de verdades está relacionado a um modo "metropolizado" de governar e de conduzir o desenvolvimento do Maranhão, concentrado e centralizado pelos palácios de São Luís.
Implodir o velho e reinventar o novo passa pela ruptura mental com essa ideologia. Começará quando o complexo cultural representado pelos 217 municípios for assimilado e incorporado pela cultura institucional, pelas estratégias econômicas e pelos partidos no poder.
Quando o diálogo entre as duas civilizações for horizontal, aí sim será possível começar a falar em profecias ou aspirações, como revolução democrática.
E isso só será possível porque as atuais estruturas de poder serão substituídas por outras, que precisam estar visceralmente comprometidas com a devolução do poder ao povo maranhense, representado altivamente por suas 217 bandeiras.